Grade

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O que importa mais: o processo de ficção ou os humanos por trás dela?

Michel Gutwilen - 29 de janeiro de 2022

É um tanto quanto incontornável falar hoje em dia de um filme brasileiro sobre prisões e fugir de um referencial estabelecido por O Prisioneiro da Grade de Ferro, documentário sobre o Complexo do Carandiru feito em 2003 pelos seus próprios detentos, sob a mentoria do diretor Paulo Sacramento. Trata-se de um verdadeiro Cinema de implosão, de dentro para fora, em que os presos contam suas próprias histórias e olham para onde querem com a câmera, manuseando o aparato técnico intuitivamente e “imperfeitamente”. Para uma prisão desumana, um cinema humano. Tendo isso em mente, é preciso pensar Grade, de Lucas Andrade. Se o cenário do filme de Sacramento era um verdadeiro inferno em que homens são abandonados para morrer, Andrade decide explorar um meio alternativo de encarceramento, a APAC. Um centro APAC é uma associação para condenados visando o início de um processo de ressocialização na sociedade, como uma espécie de prisão “humanista” em que presos são chamados de recuperandos, não usam uniforme, não são vigiados por guardas armados, possuem dignas condições de “moradia”, participam de projetos artísticos e até vão a reuniões com os administradores da APAC em que podem fazer reivindicações. 

É até engraçado pensar na frase dita para o filme de Sacramento — para uma prisão desumana, um cinema humano — porque Grade é quase que a inversão dessa lógica. Não é buscando uma certa hiperbolização ou até grosseria com o diretor o uso da adjetivação “cinema desumano”, mas uma simples constatação de que os maiores interesses da obra não são os humanos (recuperandos) em si — ou se eram, saem pela culatra. Contextualizado na Mostra Aurora, cuja temática “Cinema em Transição” agrupa diversos filmes que, cada um a sua intensidade, flertam com a “docuficção”, Grade é um dos casos em o próprio desejo de ficcionalização parece entrar em um próprio fetiche do ato em si, perdendo-se de vista no processo aqueles que estão dentro dele. Ora, existe algo mais “desumanizador” do que apagar aquelas pessoas reais e transformá-las em personagens ficcionais? Mais do que preocupado com as histórias pessoais e universos internos que aqueles recuperandos podem oferecer, a principal preocupação do filme, é, antes de tudo, com o próprio Cinema. Decupar uma cena, encenar atores-objetos — o que por sua vez leva a situações obviamente constrangedoras que os mesmos jamais deveriam passar, já que são péssimos atores — ensaiar um texto. Em Grade, é isso que importa.

Até consigo pensar numa intenção oposta para toda essa encenação, em um sentido humanizador de que se todo o mundo aqui fora possui direito a histórias ficcionais, aqueles reclusos da sociedade também possuem direito a sua própria encenação e ao seu próprio cinema de mentirinha. Ou seja, Grade seria um filme-meio para que aqueles recuperandos possam viver suas próprias fantasias, ter a oportunidade de atuarem, uma espécie de ressocialização por si só. O problema é que mesmo olhando para a obra dentro do melhor cenário possível e com todas as boas intenções do mundo, é difícil o resultado não soar como um experimento científico em que um diretor faz dos presos um objeto de estudo. Ainda dentro de todo este quadro anti-humanista, os próprios segmentos que fazem parte de Grade acabam revelando um interesse mais institucional pela prisão e seus ritos, permitindo que os recuperandos existam apenas quando inseridos nele, negando a eles momentos mais espontâneos na câmera que não sejam através da ficção. Assim, quando aquelas pessoas aparecem nas reuniões, no atendimento médico, fazendo alguma arte, no futebol, na sala de aula, na cantina etc., a impressão que dá é a de que elas são usadas como meio para mostrar o funcionamento de uma APAC do que para revelar algo sobre elas próprias. 

Por outro lado, pelo menos o olhar do diretor não parece ser tão utópico quanto a própria instituição da APAC, de modo que durante ao longo do filme é possível sentir algumas nuances que plantam a dúvida se aquele modelo é realmente algo tão bom para o detento ou apenas um diferente tipo prisão, com outros prós e contras? Principalmente nas cenas das reuniões, momento em que a direção melhor sabe como se posicionar moralmente dentro daquele lugar, algumas nuances de confrontação vão sendo reveladas. Se em uma prisão como Carandiru sequer há democracia e direitos, aquelas negociações com os administradores mostram que mesmo na democracia existem regras que podem ser injustas.


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