Homem-Aranha (2002)

Homem-Aranha (2002)

O aracnídeo mais famoso dos quadrinhos usa a estranheza do protagonista como mote no blockbuster de Sam Raimi

Vitor Torga - 11 de setembro de 2020

Considerando a galeria de heróis e vilões mais populares das principais editoras de HQs, o Homem-Aranha é um ponto fora da curva. Não é um ricaço (Homem de Ferro, Batman, Arqueiro Verde), cientista (Hulk, Homem-Formiga, Quarteto Fantástico), alienígena (Superman, Lanterna Verde, Guardiões da Galáxia), sobrenatural (Doutor Estranho, Thor, Hellboy), realeza (Thor, Pantera Negra, Mulher-Maravilha), militar (Capitão América, Viúva Negra, Gavião Arqueiro), robô (Visão, Ultron, Ciborgue e todas as outras infinitas armaduras do Homem de Ferro) ou uma mistura de algum desses. É um tipo de herói que vem perdendo espaço ultimamente: um retrato honesto da classe trabalhadora.

O maior apelo da mitologia do personagem é também sua maior fraqueza contra a constante onda de spin-offs, continuações e conjuntos do cinema, que é esse microcosmo urbano interligado em que tudo funciona muito bem sozinho, tanto coadjuvantes e antagonistas costumam ter uma relação pessoal muito forte com o protagonista tanto como Peter Parker como Homem-Aranha. E o cabeça-de-teia raramente se aventura fora da cidade de Nova York enquanto outros heróis volta e meia salvam o mundos, universos, multiversos e por aí vai. É um personagem tardio, criado na década de 60 quando o público consumidor de gibis já estava estabelecido na figura do adolescente meio deslocado que sonhava em viver as inalcançáveis aventuras dos quadrinhos na vida real, e que permitiu que muitos desses jovens finalmente pudessem se identificar com o protagonista. É o herói mais acessível do circuito convencional, e o diretor Sam Raimi entende que esse é exatamente a principal característica do seu protagonista.

O filme começa com uma narração clichê de filme adolescente enquanto os cabelos vermelhos de Mary Jane Watson passeiam em slow-motion sob a tela, quantos filmes do gênero tem a coragem de devotar o primeiro close-up a outro personagem? A primeira vez que vemos Peter Parker é no reflexo do retrovisor de um ônibus escolar, visto pelos mesmos olhos de quem o caçoa constantemente enquanto ele literalmente corre para tentar se encaixar no mesmo espaço que seus colegas de classe. Em menos de um minuto tudo está resumido, é uma história de amadurecimento. “Peter, esses são os anos em que um homem se torna o homem que ele vai ser pelo resto da sua vida. Só tome cuidado em quem você se tornará.” Essa é a última lição que o herói vai receber antes de começar a sua jornada como herói e adulto, e nesse quesito a atuação relativamente abaixo da média de Tobey Maguire ajuda bastante na credibilidade, já que mesmo batendo na casa dos trinta o ator consegue transmitir essa fisicalidade essencial desse período de transição corporal, que no caso aqui ainda é mais extrema. Os músculos crescendo, a visão melhorando, reflexos afiadíssimos e o cara segue todo desajeitado, pode não ser proposital mas tem um efeito positivo no geral.

Mas não é apenas sobre crescer fisicamente, mas crescer ao redor do espaço que se habita e encontrar o equilíbrio dentro dele. Outro diferencial do Homem-Aranha é que mesmo tendo suas origens em um evento trágico, ele poderia ter evitado a sua, então mesmo sendo uma figura abusada pelos colegas, pelo Estado e pela mídia, ele é movido por um dever humanitário que supera todas essas desavenças. O maior poder de Peter Parker é enxergar a vida humana como a coisa mais importante em todas as ocasiões, de certa forma muito mais interessado em salvar pessoas do que impedir crimes necessariamente, como demonstra a cena do incêndio (mesmo que esse tenha sido causado de forma criminosa também). A subtrama do jornal evidencia bastante isso, o editor picareta do J.K. Simmons brigando com os funcionários por defenderem um vigilante, a câmera do Raimi buscando cidadãos comuns e suas opiniões sobre o Homem-Aranha, o filme está o tempo todo estabelecendo esse elo entre o povo e o salvador. A partir daí muito coisa se desenvolve organicamente, culminando na icônica cena em que o Duende Verde força o Peter a escolher entre a Mary Jane e um bonde cheio de crianças e os nova-iorquinos salvam a barra dele. O herói consegue reverter o seu tratamento social de abusado a salvo

Por falar em Duende Verde, a base em filme de terror barato que o Raimi tem é fundamental na construção do personagem e o Willem Dafoe desde o primeiro segundo em tela já começa a vender essa imagem de monstro louco para sair da jaula. Praticamente todas as suas cenas são mais estilizadas para inferir o medo na audiência, a montagem da câmara de gás é das coisas mais assustadoras a dar em caras em filme para pai levar o filho. E pensar que tudo isso nasce da ganância do Osbourne, esse desejo de controlar o exército americano através da sua tecnologia multimilionária, é um excelente contraponto às origens humildes do Peter. Dá até uma saudade de quando os antagonistas desses filmes fugiam da unidimensionalidade enquanto abraçavam uma performance cartunesca a todo momento, um antagonista que está na outra margem da luta contra o sistema, que não é definido pela sua megalomania e nunca abandonando a personalidade original do Norman, apenas elevando-a ao milhão. O confronto final dos dois é mais pessoal do que qualquer coisa, um homem querendo destruir a vida do adversário completamente e o outro lutando para proteger aqueles que ama, inclusive o próprio filho do rival da sua verdadeira identidade.

É um filme nostálgico não só pela qualidade, mas por lembrar um momento onde a indústria blockbuster ainda não mantinha rédeas curtas em seus grandes patrimônios, permitiam que um diretor com identidade visual bem expressiva trouxesse atores relativamente desconhecidos para encabeçar os filmaços do verão. Tem umas derrapadas narrativas que o filme não tem vergonha de assumir, muita coisa acaba corrida em pouco tempo, umas transições visuais que envelheceram mal mas que sempre melhoram o enquadramento quando funcionam. Só é uma pena que os núcleos mais atingidos por isso são o do James Franco e a Kirsten Dunst, que além de ficarem sempre na periferia da trama não conseguem trazer nada de muito interessante na performance, diferente do J.K. Simmons. Mas o saldo definitivamente é positivo, ainda mais pela liberdade que trouxe para a sequência, e vale tanto o ingresso hoje quanto valia em 2002.

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