Mangue Bangue (1971)

Mangue Bangue (1971)

Crônica do desbunde, tratado sobre a condição humana

Igor Nolasco - 1 de dezembro de 2020

O momento inicial da filmografia de Neville D’Almeida é marcado por experiências infrutíferas na difusão de seus longas: o primeiro, “Jardim de Guerra” (1968) fora interditado, retalhado por cortes da Censura Federal e exibido posteriormente em uma cópia ininteligível, em parcas oportunidades. Experiências imediatamente seguintes foram igualmente suprimidas, ou pela Censura ou por problemas com os negativos. Restam hoje dois filmes dessa primeira fase. Um é o “Jardim de Guerra”, que existe tanto em sua versão censurada quanto em uma cópia integral, encontrada já nos anos 2010, tendo estado desaparecida desde 1969. O outro é “Mangue Bangue”, realizado em 1971. Após uma exibição apoteótica na cinemateca do Museu de Arte Moderna de Nova York, a única cópia existente do filme ali permaneceu, esquecida. Estando fora das listagens que inventariavam o acervo do MoMA, ela foi redescoberta em 2006 pelo pesquisador Frederico Coelho. A instituição novaiorquina restaurou o filme, o telecinou e permitiu a criação de cópias digitais. Assim, “Mangue Bangue” pode ser exibido com relativa facilidade, ainda que tenha sido objeto de raras sessões desde então.

A ideia inicial para o projeto foi concebida quando o artista visual Hélio Oiticica levou D’Almeida para a região do mangue, na qual operava um distrito da luz vermelha conhecido no Rio de Janeiro. As filmagens propriamente ditas, entretanto, se deram quando Oiticica já não estava mais presente, tendo ido aos EUA após ganhar uma bolsa de estudos. Com escassos recursos e tendo como atores profissionais apenas Maria Gladys e Paulo Villaça, Neville rodou um filme que serve simultaneamente como retrato geracional e experimentação na linguagem cinematográfica.

Sendo muito menos narrativo do que “Jardim de Guerra”, por exemplo, ou mesmo os longas posteriores do diretor que o alçaram ao posto de campeão de bilheteria (“A Dama do Lotação”, “Os Sete Gatinhos”, “Rio Babilônia”), “Mangue Bangue” tem por senso de unidade um rol de recorrências estéticas e temáticas que fazem com que o filme, ainda que não possuindo som direto, sendo mudo e sem cartelas de diálogos, discuta temáticas que refletem o zeitgeist que compreende o período entre o final dos anos 1960 e a primeira metade da década seguinte (o mundo pós-maio de 1968, por assim dizer – ainda que os movimentos sessentistas de arte de vanguarda brasileiros antecedam os protestos franceses e alcancem voo longe dos corredores da Sorbonne).

A maneira como D’Almeida e o ágil montador Geraldo Veloso (um dos mais competentes profissionais do ramo que o Brasil já produziu) articulam esses planos serve como um dos mais efetivos exemplos, dentro da cinematografia brasileira, para a montagem intelectual conforme descrita pelo pioneiro soviético Sergei Eisenstein – um dos cineastas mais explicitamente referenciados, imageticamente, pelo cinema nevilleano em sua primeira fase. Em “Mangue Bangue”, para além da montagem remetente ao russo, o que salta aos olhos é uma forte admiração pelo trabalho do curtametragista experimental Kenneth Anger.

A afinidade com o universo fílmico retratado por Anger em alguns de seus curtas mais celebrados, como “Scorpio Rising”, faz com que o filme de D’Almeida possua uma forte relação com a exposição do corpo humano e com a noção de comunidades que se agrupam por afinidade comportamental ou ideológica. Não que seja um filme exploitation que se utilize da nudez de maneira gratuita e sexualizante (assim como não é o caso em Anger); pelo contrário. Em “Mangue Bangue”, ela é natural e naturalizadora.

Ao longo de todo o filme, seus poucos atores, profissionais ou não (entre os quais consta o próprio diretor), despem-se de suas roupas, em diversos momentos, com simplicidade e até mesmo aleatoriedade. Se é sabido o quão chocante pode ser a nudez humana para os padrões morais da sociedade ocidental (ainda hoje sendo mostrada de maneira tímida e higiênica pelo cinema comercial mais bem comportado), por vezes o filme de D’Almeida conscientemente se utiliza desse naturalismo para caçoar dos ditos bons costumes. Tal despojamento é evidente nas sequências que envolvem a personagem de Maria Gladys, que vez ou outra se livra de suas vestes enquanto caçoa e faz gestos obscenos à câmera, de maneira muito mais jocosa, provocadora do que propriamente agressiva.

O mangue acaba sendo um cenário para as idiossincrasias de Gladys e algumas outras personagens, mas há ali uma vida muito própria que independe das ações arquitetadas pelas filmagens, não obstante sendo capturada, absorvida por elas. A câmera de D’Almeida adentra a intimidade dos homens, mulheres, crianças e animais que ocupam aquele espaço, fazendo um registro cotidiano daquela realidade por meio de um olhar fílmico afiado, lidando com seus lampejos de pureza e momentos de tristeza. Em dado momento (um dos mais emblemáticos da produção), duas sequências são intercaladas: na primeira, uma das figuras que o filme captura, trabalhadora sexual transsexual, prepara uma dose de heroína a ser injetada. Na segunda, eclode uma briga de galos. Ambas são unidas pela montagem e pela trilha, uma perene melodia que tem como instrumento principal o berimbau. As poucas músicas que compõem a trilha original de “Mangue Bangue” possuem esse senso de perenidade, de um alongamento que funciona quase que com propósitos hipnotizantes.

Ainda que intimamente ligado ao cotidiano da região, o longa em momento algum propõe-se a ser um documentário ou um simulacro da realidade. Na encenações, que podem ser assim chamadas ainda que realizadas de maneira quasinaturalística, encontra algumas de suas melhores qualidades. É nelas que D’Almeida consegue explorar o que parece ser o ponto principal desta obra em questão: a exploração, através do cinema, de temas inerentes à fisicalidade humana que, em geral, tendem a ser colocados em tela de maneira pudica ou são francamente ignorados. Em certa sequência, o personagem interpretado pelo diretor toma banho sob um chuveiro simples. A câmera o captura em nu frontal, com crueza, enquanto ele tenta, sem sucesso, raspar seu bigode com uma lâmina cega. Em outra, nos momentos derradeiros da produção, o personagem de Paulo Villaça, de cócoras, defeca no mato.

Uma das mais memoráveis sequências de “Mangue Bangue” é rodada em um único plano. Boa parte do filme se desenrola através de longas tomadas que ou são postas em tela em bloco único, ou divididas em segmentos menores que se intercalam, como no momento anteriormente mencionado que monta em paralelo a preparação da dose de heroína com a briga de galos. Na sequência em questão, Maria Gladys adentra um quarto onde estão D’Almeida e Damião Experiença, que, sendo músico, está aqui devidamente caracterizado em uma referência explícita a Jimi Hendrix (figura importante na fase inicial da obra nevilleana, não apenas no cinema, estando também presente visual e sonoramente também nas Cosmococas, projeto de instalações elaborado em parceria com Hélio Oiticica). Gladys os apresenta a maconha que será compartilhada entre os três, antes escondida sob suas roupas, e também uma maçã roubada em uma sequência anterior. Divide a fruta com Damião, que cospe-a; pedaços escorrem em seu rosto; Neville, enquanto isso, prepara o cigarro de maconha sobre um disco de Hendrix (outra citação direta ao guitarrista, que para além de influenciar Neville, fez a cabeça de outros cineastas atuantes no mesmo período). Os hippies – ou melhor dizendo, desbundados – fumam, comem a maçã ou a cospem, brigam, se divertem, interagem com a câmera ou falam direcionando-se a alguém que está fora de quadro, tudo ao som da sempre presente batida do berimbau. Essa sequência sintetiza “Mangue Bangue” enquanto, entre tantas coisas, um retrato do desbunde, o sentimento comum (que dificilmente pode ser considerado um “movimento” propriamente organizado) que unia jovens de mentalidade livre que buscavam, através da famosa tríade “sexo, drogas e rock ‘n’ roll”, um escapismo à realidade da ditadura militar brasileira.

Seria simplista demais definir o longa enquanto sendo meramente um “filme desbunde“. Esse elemento, apesar disso, acrescenta à riqueza temática que a produção abarca. E é o que move o personagem de Paulo Villaça, que apresenta aqui uma das entregas ao papel mais admiráveis de sua carreira, indo às últimas consequências para concretizar o espírito das sequências nas quais está presente.

O dito personagem aparece num primeiro momento como um engravatado, circulando por entre o movimentado prédio da Bolsa de Valores carioca. Sufocado por aquele espaço, pelo clima opressivo que infesta o ar que circula entre aquelas paredes, vai progressivamente mostrando-se nauseado de forma cada vez mais evidente. Ao sair do prédio, expele pela boca tudo o que havia em seu estômago. Trôpego, cai no chão e arrasta-se sobre a lama e o chorume da sarjeta.

Já despido do terno e gravata, ele é encontrado pela personagem de Gladys sob a sombra de uma árvore. Através de um aperto de mão, ela o passa um ácido. A partir daí, ambos descambam em gargalhadas, abraçam-se e Villaça se une aos desbundados. Termina o filme nu, defecando no mato, cheirando sua mão após coçar suas partes íntimas. A libertação do homem, enclausurado pelo capitalismo nefasto, só pode se dar através de um processo de regressão a seus instintos mais primários. É dando um passo para trás que ele conseguirá dar dois para frente – livrar-se das amarras que o prendem. Villaça, no filme, é um avatar da condição humana.

Não é por acaso que, em dada sequência, Gladys dança diante da câmera com a palavra “renascer” pintada em seu corpo. Através da trajetória do personagem de Paulo Villaça, “Mangue Bangue” pode ser lido como um filme sobre o renascimento através do abandono das convenções sociais em prol do bem estar próprio. Ademais, dada sua complexidade em linguagem, em processo e em temática(s), reduzi-lo a uma definição apenas não faria jus ao filme. Mais valoroso seria dizer que, após quarenta anos trancafiado em um depósito do MoMA, “Mangue Bangue” reteve frescor e energia admiráveis, sendo um monumento aos básicos instintos do ser humano e um longa indispensável aos que se interessam pela história da contracultura brasileira.

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