Maputo Nakuzandza

Maputo Nakuzandza

A linha sonora de uma rádio constrói o tecido da capital moçambicana.

Egberto Nunes - 29 de janeiro de 2022

A primeira cena de Maputo Nakuzandza captura, em plano aberto, um grupo de jovens meninos bêbados com garrafas na mão, ao que parecem voltar de uma festa (“a gaja dançou quadradinho”, solta um deles lembrando de forma jocosa). Ao avistar uma moça dentro de um carro com a porta aberta, a atenção dos meninos é direcionada para a personagem, assim como também despertamos para o que pode vir a seguir. (o que vão fazer com ela?). O assédio verbal sobre a garota, que até então não enxergamos, tem início, mas acaba rapidamente. Depois do grupo masculino sair do plano, uma mulher cobre a jovem, agora já fora do carro. O corte leva para uma senhora dentro de uma casa, iniciando o dia. Eis outra captura de atenção, dessa vez, pelo som: a rádio Maputo Nakuzandnza começa suas transmissões, informando a temperatura do dia na capital de Moçambique.

A partir daí, a faixa sonora do texto da rádio inicia sua caminhada por todos os espaços do longa dirigido por Ariadine Zampaulo, seja em um cenário possível como o de um ônibus ou pairando sobre as ruas, acompanhando a viagem de um turista ou o trajeto de um corredor. Na junção dos fragmentos desses personagens, fatalmente cabíveis de mais aproximações e estudos, temos um possível cotidiano de Maputo ampliado, mas sem nunca pegar na ponta de um acontecimento em específico ao ponto de destacá-lo em cima de outros focos.

Por cima das histórias, temos diversos modos de captar os personagens. A direção vai para o registro documental, para nossa surpresa, ao acompanhar a passagem de um turista pela cidade, comprando comida e visitando espaços turísticos ao lado de um guia. Em outros momentos, temos uma câmera observativa, fixa, que deixa uma figura esperando pelo nosso estalo dentro de uma multidão. E outra situação dentre diversas possibilidades está o registro de uma dança de um homem sob vestes brancas, em um local longe do solo, um prédio abandonado. A imagem difere dos espaços propostos anteriormente pelo filme, justamente por não haver diálogos nem movimentos pela cidade, mas que também alude para algo em conjunto com o cotidiano, com todas as outras relações daquele dia em Maputo.

Vale aqui uma atenção especial para o último item. Um pouco antes da cena lúdica aparecer pra gente, a rádio anuncia um momento de sarau, uma leitura de uma poesia. O automático apreende: o texto deve conversar com a imagem? Mas, antes, uma sucessão de acontecimentos que não eram a mesma descrição do rádio aconteciam. Aqui, será diferente? A surpresa acontece. E o poema é declamado enquanto a dança e a performance entram no plano. Não há de início algo que evidencie concretamente em tela a relação entre os dois e o texto acaba antes da performance. Mas a impressão inicial permanece, juntamente com a imagem sozinha.

Essa mesma ideia irá se repetir durante o filme. A exceção aqui é o anúncio de uma noiva que fugiu do casamento. Vemos uma noiva perdida pela cidade na mesma hora do texto e temos esse destaque. E depois voltamos para  a programação normal: notícias sobre o governo, sobre maridos assassinados, dedicatórias de amor, entre outros. O fio da rádio nem sempre tocará o tecido das imagens. Nem sempre irá corresponder com o que está em tela. 

Em um dado momento, a experiência parece pedir por uma ligação entre eles, quando até mesmo as radialistas comentam sobre a conexão entre as histórias contadas no programa, e, ainda, realizam uma leitura sobre dados envolvendo a alta taxa de suicídios na cidade e casos de depressão. Enquanto isso, uma personagem se arruma para a balada. A esposa traída prepara a mistura e o corredor continua correndo. O dia em Maputo está chegando ao fim.

A construção de Maputo se dá então por essa mistura contida de estilos (observativa, experimental, documental) captando pequenos acontecimentos na seleção de personagens em contato constante com a onipresente e natural transmissão sonora da rádio título do filme, assim como os sons da cidade e do movimento dessas pessoas, dando corpo para a narrativa através de corpos e sons em movimento. É o cotidiano, mas não somente esse registro: temos uma espécie de sonho sendo vivido, fabulado, que pode ou não conversar com os poemas do rádio. Eis nessa relação o coração do filme. A respiração provoca certos desvios para o espectador, pois ela é calma, não há uma ativação de acontecimentos para a provocação de um caos evidente no plano, ou uma comparação entre pesos. Ela é calma, porém, inquieta, pois uma cidade nunca cessa seus movimentos. E com Maputo, não será diferente. 


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