O Sonho do Inútil

O Sonho do Inútil

Filmar para reaproximar, tratar os iguais de forma diferente

Egberto Nunes - 12 de outubro de 2021

Há uma imagem que se repete em O Sonho do Inútil e que chama a atenção toda vez que ela aparece. É um helicóptero sobrevoando o céu, como se estivesse procurando alguma coisa ao seu redor ou abaixo dele. De primeira, a primeiríssima cena, aliás, por conta do pouco movimento do objeto, imaginei ser algo digital. Nas próximas aparições, já não sabia mais ou pouco me importava, mas ele ainda sequestrava o meu olhar nos poucos segundos de exibição. Antes e depois dessa imagem o que se vê são vídeos de arquivo, relatos, narrações, entrevistas, cortes de filmes. Tudo que não se esperava para esse objeto voador. Tudo que era inútil pra ele.

Seguimos com a suposta inutilidade (para o objeto já descrito). No arquivo: vídeos “insanos”, de brincadeiras, com intuito de causar humor e alguns machucados aos participantes. Nas cenas dos filmes: Jackass (ei, José, o grupo americano já me tocou bastante e quis imitá-lo, não botei em prática), Buster Keaton e Charlie Chaplin, as influências. Nos relatos: bom… as entrevistas de quem ficou dos vídeos e familiares. Todos os elementos caminham juntos no filme, não pedem licença para entrar e são montados pelo diretor, José Marques Carvalho Jr, que também é personagem pois participa das imagens de arquivo e aparece uma vez ou outra no filme. E para acabar com a especificação: o nome do grupo que aparece nas imagens de arquivo era Inútil

Com os elementos colocados, há no filme a ideia de uma linha imaginária que liga os destinos, do nascimento do grupo até onde eles estão agora. E essa linha sofre algumas chacoalhadas, algumas mexidas, na medida em que cada estilo vai se impondo ao filme. Quando estamos vendo os arquivos, eles são mostrados de forma compilada, cada um indo de segundos a pouco mais de 1 minuto, formato semelhante aos vídeos postados em redes sociais ou aos clássicos no YouTube. É o jeito ideal, pois são vídeos que provocam primordialmente uma sensação de riso, não há tempo para ideias, clima, reflexão. É a hora de rir da galera se machucando. Por outro lado, essa linha é bem firme, é bem segura, quando estamos no presente, nas entrevistas, na vida do agora, pós-adolescência. É o momento do conhecimento, apreciação dos personagens, seguir a vida deles com eles, entender melhor quem é cada um.

Durante o longa, a narração, do próprio diretor, nos convida para o processo do filme e da caminhada por essa linha. Porém, é um caminhar sem placa de aviso, sem sinalização, uma estrada sem fim. A percepção de cada elemento está dentro de cada elemento e a racionalização e sensação é conjunta. Por isso, o único momento em que há um distanciamento é quando não há essa entrada. É quando olho para o céu e vejo o helicóptero, é quando fujo das histórias. Mas logo abaixo a cabeça e mergulho novamente no que estava antes. E entendo o que forma a sombra que aquele helicóptero faz. 

A sombra, é importante dizer, registra os sonhos dos amigos, que nasceram, viveram ou até mesmo morreram em Cordovil, bairro na periferia da zona norte do Rio de Janeiro, onde a história é contada. Aluã Topeira, cozinheiro que quer conhecer sua mãe novamente, Diego Ald, rapper que sonha em viver da música, Daniel Nascimento, pai de família, cabeleireiro e com a vontade de voltar a grafitar, José, o próprio diretor, segue fazendo filmes (já tem um curta e um longa antes de O Sonho do Inútil) e Douglas Santos, que queria ser conhecido na quebrada, aquele que o helicóptero sabe muito bem a história, porque morreu numa troca de tiros… Em entrevista para o festival no canal do YouTube do Olhar de Cinema, José diz que o filme mostra cada um dos personagens seguindo suas artes. A gente não conseguiu ver qual seria a de Douglas.

E se o lema do Inútil talvez seja jovens que não se adequam a regras da sociedade, falado de forma irônica por um dos personagens, não há regra para as imagens durante o longa. Não há imagem “ruim”, é tudo imagem pronta para ser embaralhada e misturada pelo filme. O conjunto composto de diferentes formatos imbricados dentro de um longa é algo de destaque e de enorme rigor. Talvez porque, para quem as opera, são nada menos que memórias. Há o ano inscrito como legenda justificando a baixa qualidade e o uso de máscara ou câmera fixa olhando para o personagem indicando a atualidade, mas ainda é tudo misturado e não temos tempo de parar a viagem e dar importância para algum ponto estético específico do frame e nem para a qualidade da voz do diretor, que me lembra gravação de áudio no celular, mas, de novo, não me importou.

O que se vê, no fim das contas, é uma noção de igualdade (e por que não “utilidade?”) para todo e qualquer tipo de vida, estética ou não. São todos iguais, todos possuem seu valor, mesmo que não sejam quantitativos, como comenta a crítica Juliana Costa, em texto para o Cine Festivais. Mas o clichê se sustenta: temos que tratar os iguais de formas diferentes. É por isso, novamente, que as imagens de arquivos são compiladas e que os relatos atuais permanecem, são de longa duração, precisam ficar com a gente para que tenhamos uma ideia e uma aproximação maior com quem fala e é por isso também que o helicóptero passa por tão poucos segundos, ele não importa (ou é importante de uma outra maneira), é o que está nas ruas e esquinas que é útil mesmo.


Este texto faz parte da nossa cobertura para a 10ª edição do Olhar de Cinema.
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