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Quem fala de cinema, hoje, na internet?

Quem fala de cinema, hoje, na internet?

Redação - 27 de abril de 2018
Por Fábio Rockenbach

Quase todos nós fomos educados assistindo a filmes, de maneira inconsciente, a ponto de reconhecermos, desde cedo, elementos básicos para interpretar a linguagem. Meu filho de 2 anos assiste aos filmes de Harry Potter e fica grudado do início ao fim. Não entende muita coisa, mas não tem dificuldade de entender o processo de uma cena levar a outra, a existência da música, a existência de personagens na tela, e principalmente o princípio básico da suspensão da descrença, que para os pequenos funciona de forma mais fácil do que qualquer outro.

Todos nós, enfim, crescemos assistindo a filmes. Como resultado, todos acham que conhecem cinema.

Principalmente quando a maior parte do público ainda vê o cinema como diversão, e não como arte. Parte da culpa é do próprio cinema, que se fez tão fácil de ver, e tão rápido. A teórica Kristin Thompson, esposa e companheira de produção intelectual de David Bordwell, autor neo-formalista de obras de referência ao lado de Thompson, conta uma história que resume isso.

Ela diz que várias pessoas, quando ela sai, vêem até ela procurando sugestões de filmes. Muitos pedem a ela filmes que eles precisam ver, os filmes obrigatórios, aqueles essenciais. Thompson sempre cita um de seus filmes favoritos, A GRANDE ILUSÃO, de Renoir.

Ao ouvirem a sugestão, as pessoas olham para ela e balançam a cabeça, afirmando nunca terem ouvido falar do filme.

Thompson argumenta que ela, então, se deu conta de como o cinema é desprezado, porque se ela citasse cânones da literatura, da música clássica ou da pintura, e alguém dissesse não ter visto ou não conhecer a obra, a reação imediata em torno dela seria a de questionar o nível cultural dessa pessoa.

“Como não conhece Shakespeare? Como nunca ouviu Mozart? Como não sabe quem foi Michelangelo?”

No entanto, ninguém tem vergonha de dizer que não conhece ou nunca ouviu falar dos cânones e obras essenciais do cinema. Principalmente porque, para muitos, o cinema é apenas entretenimento.

É como diz Christian Metz, pai da semiologia aplicada ao cinema: “Um filme é difícil de explicar porque é fácil de entender”. O filme é feito para ser compreendido de forma fácil, rápida, dinâmica. Poderíamos entrar em vários aspectos, da montagem invisível do cinema clássico ao princípio de identificação com o mundo diegético, coisa que Morin já escrevia nos anos 50, mas vamos ficar com a ideia básica de que, como todo mundo acha que é fácil ver filmes, todo mundo acha que também é fácil opinar sobre eles.

O resultado da minha interpretação rasa da frase de Metz pode ser vista na enxurrada de blogs, canais do youtube e podcasts espalhados pela rede. Enquanto a internet oferece possibilidade de proliferação de conteúdo de qualidade – e aí poderíamos citar também blogs, podcasts e canais com muitos seguidores e um trabalho exemplares – há um número ainda maior de “produtores de conteúdo” nivelando por baixo a apreciação do cinema. Não se trata de gostar ou não de filmes de heróis ou filmes de arte. Se trata de conseguir falar bem ou mal de ambos da forma correta, sem propagar modismos ou falar, vamos lá… besteiras.

O culto à regurgitação

O escritor Andrew Keen publicou, há anos, um livro chamado O CULTO DO AMADOR, onde ele narra suas frustração com o fenômeno da internet e, principalmente, da web 2.0, a internet colaborativa que tornou o público um produtor de conteúdo, e não apenas a ponta final do processo de comunicação até então imutável entre “emissor-meio-receptor”, uma ideia básica das teorias da comunicação. Keen dizia que nos primeiros tempos da internet, o sonho dos desenvolvedores, ele incluso, era que qualquer pessoa pudesse fazer download de toda a discografia de Bob Dylan para poder ouvi-la. “Hoje, o que aconteceu é que em vez de ouvir Bob Dylan, temos milhares de pessoas achando que são Bob Dylan e jogando suas porcarias na rede” ele diz. Como resultado, o verdadeiro Bob Dylan começa a ser esquecido no meio do monte de lixo e do excesso de conteúdo da rede. As referências vão se perdendo, inclusive a própria referência do que é qualidade.

No texto de despedida do seu canal Every Frame a Painting, Tony Zhou e Taylor Ramos escrevem um parágrafo emblemático sobre os perigos da ausência de referenciais: “Uma imensa porcentagem da Internet é a mesma informação, repetida várias e várias vezes. Isso é especialmente aparente em sites sobre cinema; eles chamam de agregação mas é, no fundo, uma maneira mais legal de dizer regurgitação”.

Zhou e Ramos estão certos. Boa parte da pesquisa do canal era feita em bibliotecas. A internet tem a tendência de minimizar e reduzir a informação que é apurada e ampliada na literatura. O problema, aqui, é a facilidade de acesso proporcionada pelas redes e a aparência, dada pela própria rede, de que esse conteúdo é suficiente.

A ausência de referenciais prejudica uma das grandes máximas do texto crítico: a de que toda abordagem é influenciada pelos referentes carregados pelo crítico. O filósofo Wittgenstein diz, em um de seus textos sobre arte, uma frase que eu adoto como mantra: “TODO VER É UM VER COMO”

Significa, basicamente, que minha forma de ver aquela manifestação artística é baseada fortemente nas experiências e conhecimentos que eu carrego comigo. Quanto mais embasamento teórico, quanto mais conhecimento e quanto mais vivência de vida, de outras artes, de outras filmografias e, também, conhecimento de mundo eu tiver, maior a chance de conseguir estabelecer relações que circundam a obra fílmica.

O problema decorrente disso: se todo ver é um ver como, vejo parte da crítica de cinema hoje, incluindo muitos canais – não todos, isso não é uma generalização, mas infelizmente muitos, extremamente populares – como um “ver” realçado a partir de alguém que viu ou leu muito pouco.

Lapso de referências

Vejo uma crítica que baseia seus julgamentos, principalmente, a partir de obras contemporâneas – um problema que, diga-se de passagem, serviços como a Netflix tendem a só piorar, mas isso é assunto para outro momento. Uma crítica que julga ser ampla ao recorrer ao cinema antigo, mas que consegue recorrer, no máximo, aos cânones, dizendo que, por serem cânones, se bastam, e citam Kubrick, Welles, Kurosawa, Scorsese, Fellini, 2001, Cidadão Kane, Casablanca, mas se mostra incapaz de citar Nicholas Ray, Satyajit Ray, Kobayashi, Renoir, Rohmer, Samuel Fuller. É a crítica que resume o cinema coreano a Oldboy e A Criada, ou que acha que o único Kurosawa com destaque no cinema já morreu e fazia filmes sobre samurais. É a crítica que vive falando da genialidade da mise-en-scène de Orson Welles e a longa profundidade de campo, mas jamais cita o quanto William Wyler elevou ainda mais esses conceitos ao longo dos anos 40, porque para eles Wyler é somente o diretor de Ben Hur, um filme popular. É a crítica que se refere ao western como “bangue-bangue” e enche o gênero de reducionismos. É a crítica que assiste a Projeto Flórida e critica o filme por ser muito parado, dizendo que ele não é sequer um filme, que não tem roteiro ou personagens bem definidos, porque provavelmente não conseguiu se educar assistindo a outros cinemas que não fossem calcados no velho cinema narrativo clássico americano. É a crítica que olha bons filmes de terror surgidos nos últimos anos, depois de uma fase de vacas magras na produção americana do gênero, e repentinamente acha que há várias novidades narrativas e formais, mas que não possuem escopo suficiente para olhar para trás e perceber que todas essas novidades vem sendo feitas há 50, 60, 70 anos…

O “crítico” sem essa bagagem, e que acaba sendo influenciado pela falta de experiências (vejam bem, a falta de experiência e a falta de experiências aqui são coisas diferentes, já que há pessoas com uma década de experiência no ramo, mas sem experiências suficientes na própria arte para embasá-lo) acaba sendo abatido pela própria intenção de ir além do que pode. Torna-se um mero resenhista.

É uma crítica que, sem referências, chega a ponto de falar sobre Kubrick e dizer que ele inventou o drama de guerra com “Glória Feita de Sangue”, ignorando filmes como Harpa da Birmânia, de um ano antes. Indo além, um grande número de obras bem anteriores, como Nada de Novo no Front, de Milestone, ou um clássico referencial como é A Grande Ilusão, de Renoir.

O assustador é perceber “verdades” criadas como essas se amplificarem e tornarem-se verdades para públicos estimados em dezenas ou centenas de milhares de seguidores. A velha ideia de que uma mentira contada mil vezes torna-se verdade amplia a noção de Fake News para o campo do conhecimento e da cultura. O culto do amador, previsto por Keen, está perigosamente se espalhando a partir de um nivelamento por baixo entre público leigo e produtores de conteúdo rasos. O lixo vai se acumulando, enquanto o material de qualidade vai ficando restrito a pequenos nichos. As mentiras começam a se tornar verdades.

O cinema só perde…

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