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RODSON ou (onde o Sol não tem dó)

RODSON ou (onde o Sol não tem dó)

Abraçando os riscos cibernéticos

Egberto Nunes - 25 de janeiro de 2021

“Você pode deixar minha câmera em paz?” (“Jaiz”, 2014).

“Assista esse filme de olhos fechados” (“Fataurex”, 2018).

Essas duas frases foram tiradas de dois filmes diferentes do grupo Chorumex, cujos realizadores de “RODSON ou (Onde o Sol não tem Dó)” fazem parte e, de uma forma ou de outra, estiveram presentes. Esses dois conceitos, do questionamento e da negação do usual, vão ser fritados – para usar o vocabulário da turma aqui comentada – em “RODSON” e transbordar pela tela da forma mais quente que a mesma permite.  É o anúncio do caos, daquilo que não está nem num espaço nem outro.

Nos localizo com a sinopse:

“São os pré anos 3000. arte é crime. refletir é proibido. Ler não existe mais. Somente produções e consumos em massa são permitidos.  RODSON®. Um garoto com seu animalesco instinto artístico reprimido pela sociedade ao seu redor, só mais um de muitos…  O governo anarcocrenty comete o engano de achar que a besta estivera sob controle, mas sua mente concebe CALEB® o alterego de RODSON@ que o lança estrada a fora, abandonando ares-condicionados em busca da alucinação perfeita sob o Sol sem dó de 2000°C que a última camada de exosfera proporciona à vigente sociedade.”

O que virá a seguir são todas as sensações mais corruptoras da imagem, um processo anárquico e destruidor, causado pelo artesanal que o digital permite.

É significativo, contudo, que a primeira imagem do filme – após os avisos contra indicando a assistida para pessoas epilépticas e fotossensíveis – seja de uma vinheta com chiado de televisão antiga, um cartaz com modelo institucional escrito “livre” ao lado de cartelas pretos e uma locução que diz: “esse programa foi aprovado e liberado pelo serviço de censura federal para ser exibido neste horário”. E então, começa os letreiros limpos e vermelhos no fundo estrelado alà Guerra nas Estrelas: “CHORUMEX APRESENTA”. Conhecemos os nomes por trás do crime.

A referência é direcionada aos períodos de censura que a ditadura militar brasileira exerceu sobre obras audiovisuais. Mas  tanto o estado em que estamos agora não carrega esse símbolo censório, nem o mundo de RODSON age sobre esse meio – pré anos 3000, o que nos espera?

E ainda no pé dos anos de chumbo, uma fase do cinema que teve seus produtos mais censurados foi o cinema marginal. Se o Chorumex faz alusão ao movimento da boca do lixo, não sabemos.  Mas a sensação que temos ao adentrar as sensações de RODSON são semelhantes. Mas aqui estamos no mundo cibernético. Se a sensação de explosão da tela pode ser sentida “O Bandido da Luz Vermelha”, sintetizada na montagem proposta por Sganzerla, a explosão aqui é sentida também, mas visível e exagerada. Ela age no campo das sensações e também da própria encenação da edição. Se podemos interpretar como anárquico todo o sistema marginal, “RODSON” age nessa mesma medida, de forma declarada (o anarcocrenty do título e diversos outros signos durante o filme). É o cinema marginal dando as mãos para as potências internéticas do futuro.

E Rodson poderia também se entender – ou brigar até que se desmanchem as telas – com Superoutro, personagem do curta-metragem de Edgar Navarro, de 1989. Ambos seguem jornadas que questionam qualquer ideia de status quo do bem viver da sua era. Navarro, em seu curta, é escatológico, corruptor, direto, sonhador, mas destruidor também, é sujo, mas se recusa a viver na sujeira, invadindo o povo e voando pelas telas. Esse vôo é em todos os sentidos, porque Superoutro invade as telas no seu contato final, sendo transparente com a imagem após acordar a humanidade. Vejo que Rodson realiza o inverso. Chorumex faz a própria imagem invadir Rodson, se apoderando do invisível, do que está por vir e dominando a tela, deslocando símbolos de seus espaços característicos para um outro significado, trabalhando no sentido das sensações da tela.

A proposta do Chorumex é renegar qualquer tradicionalismo convencional cinematográfico e se adequar ao próprio regime. É uma contracultura intercalada com deboches explícitos e uma espécie de jogo transversal audiovisual, que toma a tela em todos os lugares, que plastifica os sons e abusa dos efeitos em prol da contaminação riscada. Não há nenhuma obediência, seja pela atuação gritada, seja pela câmera que engole o campo, seja pela recusa do protagonista em seguir em frente com todos os planos de sua vida. Não dá, o Chorume impede.

A alcunha do trash, do underground, do sujo e do amador se faz presente aqui, mas afogada de símbolos de estilos que procuram renegar o encaixe na tela, ao mesmo tempo atropelando e saindo da mesma. A jornada de Rodson é a da perdição e a do heroísmo, e no seu caminho, ele encontra as mais diversas experimentações desse lugar, que vira não-lugar, e que transita pelo tempo.

Os símbolos engolidos pelo chorume são diversos e obedecem a mesma desordem proposta pela experimentação. A luta caricata dos pistoleiros milicianos contra Rodson figura no campo do amadorismo ao mesmo tempo que encarna o kung fu arruaceiro mas, novamente, atropelado pelos efeitos debochados do som. A referência aos filmes mudos no sequestro de Rodson tem suas cartelas danificadas para a inserção do extremo colorido na tela de efeitos hipnóticos com o vídeo sendo espelhado. O espaço político calcado nos discursos pós-modernos, tanto de protesto quanto da própria intervenção artística no precário e a recepção do público também é testada aqui, sempre calcada no deboche, no desconforto das imagens e das sensações.

É a lógica do desmonte da imagem e do som. Anarquia digital. É o termo político tanto no seu sentido de desordem imagética-sonora, mas também do que a ideologia representa, um movimento que renega tanto o sistema vigente, ou seja, o capitalismo, quanto aquilo sonhado pela esquerda socialista. Anarquia renega o Estado. Transposto para o que Chorumex propõe, é a negação da ordem formalista convencional. Isso está mesmo nos títulos: se são enormes, possuem parênteses, indicando algo a mais, se for apenas uma palavra, esta é a junção de termos inexplicáveis (Jaiz, Fratauex), apenas sensíveis. Isso desemboca em outra via durante a fruição das obras. Não há mais espectadores passivos, e esses não precisam nem dos óculos 3D ou algum outro recurso especial. É feito com o que tem aí e visionado com o que temos.

As cores e sons espalham pela tela inesperadamente sem obedecer o que estava antes proposto, descontrolando e desamarrando a experiência, indo e levando para onde a tela imaginada permite. Ainda que a contraindicação no começo do longa impeça pessoas fotossensíveis e epilépticas de assistirem, a fruição aqui não foi exatamente a mais tranquila também, e nesse sentido, foi um sucesso. É o “Veja isto com olhos fechados” do Fataurex. Não, Rodson não tem esse aviso, mas opera na mesma lógica: a da negação da fruição convencional do audiovisual. O seu som estrala, risca, enquanto os símbolos imagéticos, desde os “memes” até os efeitos de powerpoint, Wordart, espelhamento da imagem, agem na explosão do ritmo energético da desordem do filme.

Há também duas recusas na ordem Chorumex que vem logo à mente: quando criticamos um filme, é comum que nos agarramos ao termo autoral. Presente em todos os filmes, essa análise permite perceber o diretor como a força criativa por trás do filme, logo, é nele que devemos pensar ao falarmos sobre a obra. Não é somente porque a direção aqui é tripla que não conseguimos fazer isso. Pensar em “RODSON” é pensar nesses corpos que fizeram a obra e suas mentes em comunhão desenrolarem no filme. “RODSON” nos obriga a refletir (ou sentir?) até mesmo aquilo que costumamos passar despercebido, os nomes por trás da obra. “Insiranomeaqui” e “S.brxxzkjxkzxkxkz” são apenas dois exemplos. É o sinal do “pare e faça algo com isso, tente”.

Os espaços em que “RODSON” se propõe veicular, tanto no sentido de circulação de imagens quanto de exibição, também podem ser pensados aqui. Comecemos com a ficção: “Anos 3000”. Essa já é uma referência a outro trabalho da equipe: “Os Anos 3000 Eram Feitos de Lixo (ou Quando a Dignidade da Raça Humana se Afogou no Chorume Estático da Arte da Hipocrisia)”. Sim, “RODSON” é uma ficção científica e seus produtos chorumísticos também. A velha máxima de que a ficção científica usa o futuro para comentar algo do presente também é válida aqui. O pulo no futuro, porém, é outro. Suas obras falam sobre o próprio cinema e o próprio consumo dos filmes, do que ele pode ser no futuro e de como ele não é aqui, mas pode ser durante a exibição dos filmes. No curta citado neste parágrafo, temos ciborgues que vão atrás de pessoas que traficam fitas com filmes underground tóxicos. Essas duas alusões, o apoio em elementos de fantasia distópica e o comentário político debochado sobre o próprio filme, são recorrentes em “RODSON”. E se as imagens são como são, com ações toscas e amadoras, como não pensar a própria intervenção da edição e da montagem debochada como esse ciborgue cultural tomando conta da matéria?

Retorno a primeira frase do começo do texto para sintetizar isso. A câmera de Chorumex não tem paz, é violenta; o próprio Rodson encontra violências durante seu caminho. Uma violência controlada por intervenções digitais psicodélicas, que suga Rodson para diferentes campos. Uma violência na própria feição do filme e no movimento de afastar a imagem daquilo que a câmera deseja focar, pelos seus meios digitais ou pela montagem.

É o questionamento inicial que também é feito no filme “Ilha” (Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2018). Tal como o curta “Jaiz”, a dupla baiana conflitua o tradicionalismo e o convencional, também por meios do sequestro tal qual Chorumex faz em “Jaiz”, ainda que em diferentes medidas. E uma ideia muito presente em “Ilha” é do abraço ao risco, do desajeitado, do erro. É a recusa da limpeza de imagem de “RODSON”, é a briga errática, são os choros exageradamente fingidos e os gritos exagerados que incomodam por estar ao lado de uma trilha estridente e fritada, fazendo nossos próprios sentidos brigarem.

Um outro campo possível de ser tocado aqui é do Youtube Poop Br. Sub-gênero de vídeos experimentais do youtube que se apropriam de trechos de qualquer obra audiovisual, mexendo com som e imagem a fim de, geralmente, causar o riso. É possível dizer que em alguns momentos “RODSON” até faça o mesmo, mas o que difere aqui é não ter uma sensação exatamente direcionada. Ainda que possamos nos incomodar, sentir medo ou se emocionar com o Poop Br, é algo raro. Ele acaba rápido e geralmente se desenrola no riso dali mesmo, pelo deslocamento de textos, sons e sentidos.

Mas diferente do Youtube Poop, “RODSON” propõe uma experiência que se estende, não somente na sua duração, mas também no que vem após ela. E mesmo o coletivo Chorumex, está no Youtube, suas obras estão lá, funcionando na ordem livre que a plataforma permite, e agora operando na lógica de prazos, curtos visionamentos e atingindo um público maior.

Sobre um dos produtos desse sub-gênero audiovisual “youtubístico”, que é o Youtube Poop, Mia Aragão, em crítica publicada na revista Cinética, irá dizer: “Tudo em O Verdadeiro Motivo conflui para um efeito de oposição entre o todo e um indivíduo que está fora e ao mesmo tempo no centro da situação, pres-sentindo e sendo o último a saber ao mesmo tempo”. “RODSON” é ele próprio esse efeito de oposição, causado pelo uso ostensivo das funções de som e edição, que faz com que nem nós nem os personagens ali inseridos esperem as inserções fantasmagóricas e possessivas da tela.

Mia Aragão termina seu texto sobre a transformação feita por Rarirama em um trecho do programa de entrevistas do Jô Soares, comentando sobre a experiência do espectador: “Nos tornamos presa, e com consentimento, da tentação de construir sentido lógico-narrativo em uma imagem que explodiu seu conteúdo original e cujo grande trunfo – o seu verdadeiro motivo – é exibir-se em sua transmutação cheia de armadilhas.” Síntese de “RODSON”, produto da intertextualidade garantida pela internet que mexe com nossa passagem pela experimentação.

Enxergar esse filme como parte da Mostra Tiradentes, inserido na seção competitiva Olhos Livres (tudo a ver com “RODSON”), que busca destacar o que há de “de mais forte no cinema brasileiro da temporada” aponta para um estudo do encaixe de “RODSON” nesse contexto, de uma necessidade de deslocar e reconfigurar nossa visão sobre o esperado e o que está posto. Pode até ser um movimento de ousadia, mas que já vimos sendo traçado desde sua anterior edição, com “Canto dos Ossos”, vencedor da Mostra Aurora. Ambos são filmes nordestinos, trash, que recusam o refinamento do quadro e aderem ao underground. Um concentrado no gênero de terror, e outro livre de qualquer posição de gênero. Podemos ver “Canto” na sua história de conto estabelecida e aderindo ao sangue na tela como seus gritos mais explícitos do ato de editar, em momentos pontuais do filme – aqui em “RODSON”, sai do ponto e pega o plano geral. E mesmo a defesa do Júri para o filme da dupla Petrus de Bairros e Jorge Polo, parece retomar algumas características do Chorumex: “um filme pode nos dizer coisas pela metade, pode errar ou exagerar e, no entanto, pode, à sua maneira, revelar epifanias que nos oferecem o intempestivo cristal de um segmento de tempo, de gesto, de susto privilegiado”.

E, agora, operando na lógica dos festivais, provoca nosso próprio movimento esperado de visionamento, das maratonas e dos comentários rápidos. Mas, ao mesmo tempo, me parece que “RODSON” pertence à este espaço da fruição online e gratuita, que acaba democratizando e permitindo os diversos contatos, não só daqueles que vão aos festivais e que, no geral, esperam obras inventivas, ainda agarrados ao formalismo que “RODSON” renega.

Ainda que a obra tenha sim uma história agarrada na já conhecida “Jornada do Herói”, ela tira sarro disso, de quem assiste, de quem questiona e espera algo. Insere legendas, insere jogos 8bits para representar uma passagem do personagem, ignora isso para concentrar uma esquete de outra figura. A esquete digital psicodélica do cinema ignora a convenção, a  lógica e abraça os sentidos.

Finalizo esse texto voltando ao título que é a própria recusa do estado de ser gramatical. É uma leitura que nos obriga a ignorar o sentido e falar como a frase chega pra gente. “RODSON ou”. Ou o quê? O parênteses indica intervenção do que se o “ou” não tem nada sendo acompanhado? Seria o sol não tem dó esse “RODSON ou”? Sinceramente, essa digressão não importa. Fazer esse questionamento não é do campo de Chorumex, pois, como diz a própria sinopse do longa: “arte é crime. refletir é proibido. Ler não existe mais”


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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