“Sob Total Controle” e “Mil Cortes”: diagnósticos do horror contemporâneo

“Sob Total Controle” e “Mil Cortes”: diagnósticos do horror contemporâneo

Nada de novo no front

Wallace Andrioli - 12 de abril de 2021

Sob Total Controle parece uma longa matéria jornalística, daquelas exibidas no Fantástico, da Rede Globo, nas noites de domingo. Os diretores Alex Gibney, Ophelia Harutyunyan e Suzanne Hillinger se apegam à lógica da urgência, típica dos noticiários, para denunciar a negligência gigantesca do governo Trump no trato com a pandemia de Covid-19, ao longo de 2020. Era preciso fazer um filme às pressas, a tempo de marcar uma posição explícita no contexto eleitoral norte-americano.

O conteúdo de Sob Total Controle é, de fato, revoltante, mas muito mal articulado enquanto cinema. Gibney, Harutyunyan e Hillinger simplesmente acumulam dados, nomes, números e comentários indignados, falhando em construir uma narrativa envolvente, que se aproveite dramaticamente desse amplo material pesquisado. Eles apostam tudo na legitimidade da crítica a Trump e o resultado é um filme confuso, arrastado e muito convencional enquanto documentário.

Fez falta também algum distanciamento temporal, talvez ao menos aguardar o desfecho das eleições presidenciais, que representaram uma espécie de conclusão do processo registrado em Sob Total Controle. Mas Gibney é mesmo esse perfeito representante de um certo documentário feito nos Estados Unidos, mais próximo do jornalismo que do cinema (Harutyunyan e Hillinger são estreantes). A sofisticação narrativa dos filmes do diretor é quase sempre nula.

Ao menos Sob Total Controle serve para lembrar que o presidente brasileiro não é original em sua criminalidade contumaz. É incrível como Bolsonaro emulou de Trump praticamente todos os seus passos na pandemia, do negacionismo à hidroxicloroquina, passando pela recusa do uso de máscaras. O resultado, nos dois casos, foram números altíssimos de mortos. A sorte dos Estados Unidos foi que no meio do caminho havia uma eleição presidencial, o que ainda falta tempo demais para acontecer no Brasil.

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Mil Cortes, de Ramona S. Diaz, também tem pontos de contato muito fortes com o Brasil contemporâneo. O documentário acompanha os embates entre o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, e a jornalista Maria Ressa, CEO de uma organização de imprensa bastante crítica ao autoritarismo governamental, especialmente na política de “guerra às drogas”. Diaz repete alguns dos problemas de Sob Total Controle, como o excessivo convencionalismo que permite encaixar ambos os filmes na definição de “documentário cabo”, de Fernão Pessoa Ramos.

“O documentário cabo é um documentário assertivo. Mas, ao contrário do documentário típico do período clássico, as asserções são estabelecidas por vozes múltiplas. A narrativa enuncia não apenas através da locução, em sua posição de voz de Deus falando sobre o mundo, mas através de uma multiplicidade de vozes, representada por entrevistas, depoimentos, material de arquivo, diálogos.”

No entanto, Mil Cortes acerta ao definir uma protagonista específica, com alguns antagonistas também claramente selecionados (além de Duterte, a cantora que se tornou apoiadora fanática do governo e o ex-militar que assumiu a chefia do sistema prisional filipino e concorre a uma vaga no senado). A partir daí, a diretora consegue construir uma narrativa que combina indignação com os fatos mostrados e envolvimento com a trama, num crescendo angustiante de perseguição à imprensa pelo governo Duterte.

E é justamente na figura do presidente filipino que Mil Cortes se torna incomodamente familiar para o público brasileiro. Como Bolsonaro, Duterte é um homem grosseiro, de linguajar violento, que se comunica por meio de expressões e piadas de cunho sexual, pouco afeito às instituições democráticas e que carregou vários familiares para a política. Olhar para esse governante, bem como para Trump em Sob Total Controle, gera uma sensação ao mesmo tempo de certo conforto (afinal, o Brasil não está sozinho nesse buraco) e de desespero, pelo reconhecimento de uma tendência internacional muito difícil de ser totalmente derrotada.

Vale por fim pensar na exaustão provocada pela repetição recente desse tipo de documentário, muito em voga pelo menos desde a ascensão de Trump ao poder. Filmes como esses dois raramente produzem algum tipo de reflexão mais substancial sobre os temas que abordam – até porque não passam de versões cinematográficas do livro Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, não conseguindo ir além, portanto, da lamentação pela corrosão da ordem liberal –, muito menos sobre suas próprias imagens. Não há inventividade ou qualquer rigor na construção das narrativas. Em sua “importância”, simbolizam a total sujeição do documentário ao jornalismo e a agendas políticas do presente. E aí, como os jornais do dia anterior, logo perdem parte significativa de seu valor.

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