Solange

Solange

O desarmamento de um corpo para revelar sua alma

Michel Gutwilen - 31 de janeiro de 2023

Solange é um filme que desarma: não no sentido literal, mas emocional, no corpo e alma. A genial atriz Cássia Damasceno é pura transformação: um dia existiu uma Solange, mas, quando a narrativa começa, o que vemos são apenas fragmentos e resquícios de uma matéria em desunião. O corpo está presente, mas a alma está longe, vagante e perdida. Os processos de deslocamento realizados pela protagonista são, acima de tudo, em direção a uma desfragmentação do ser, para que a Solange uma vez existente possa se encontrar em uma busca pela unidade perdida no meio de uma metrópole desnorteante que guarda fantasmas de um tempo pretérito. A economia narrativa e o jogo de mistérios permite que se absorva menos os acontecimentos narrativos e fiquem mais perceptíveis os sentimentos que existem nas zonas cinzentas não reveladas, entre as rusgas e afetos.

Sem muitas respostas, encaramos uma série de encontros de Solange com pessoas de seu passado, sem de fato saber o que motiva fricções e desconfortos estampados no rosto de Damasceno ao encontrar esses fantasmas. Em cada uma dessas situações, parece que Solange deixou um pedaço de si e vêm buscá-lo de volta, acumulando tudo na caixa que carrega consigo. Estruturalmente, Solange parte dessa fragmentação para existir como um filme de passagens, de impermanência, de uma rápido deslocamento de um lugar para outro de uma personagem em movimento. Há um curioso momento em que a protagonista está com uma amiga, até que essa some por alguns segundos, como se ela realmente tivesse desaparecido do espaço, até retornar novamente sem muitas explicações, um estranhamento deslocado o suficiente para vibrar essas fantasmagorias do filme. 

O roteiro escrito a seis mãos pela própria Cássia e a dupla de diretores Nathália Tereza e Tomás von der Osten criptografa o que na verdade é uma premissa muito simples sobre a volta para uma cidade e a necessidade de enfrentamento de uma dor mal resolvida. Gradualmente, há uma maior abertura no filme para que se entenda o que aconteceu, com esse ato de revelação andando lado-a-lado com a abertura da própria personagem de Solange para o mundo. Ou seja, é como se ela fosse tão fechada, em constante postura defensiva, que nem mesmo o espectador ou a câmera são seus confidentes de início. 

A câmera, colada no rosto da atriz, parece não conseguir atravessar sua superfície, que é uma fortaleza misteriosa, repulsora de afetos. Inicialmente, Solange é sufocada pelos outros personagens, e eu diria que nós, espectadores, também somos invasores de sua privacidade. Há uma sensação de que essa personagem precisa ficar em paz, reclusa. Só que, por outro lado, a câmera parece insistir nela, mesmo que de início isso signifique um aprisionamento em sua tela quadrada. Sem muitas pistas, somos que nem a síndica que tenta entrar em contato com Solange, mas fica barrada na porta e só consegue ver uma fresta do que há lá dentro. 

Aos poucos, o filme nos chama para o interior e responde o motivo de insistir tanto na sua tentativa de desarmar a personagem: há uma sensibilidade e beleza escondidas no fundo dessa mulher carrancuda, que valia a pena ser desarmada. Por isso, o papel da câmera é nobre com ela: ao insistir nesse posicionamento ao seu lado, a câmera é sua única amiga que persiste em cada plano, ainda que todos ao redor vão embora, que se permite se perder e se abrir com Solange, sempre acompanhando a movimentação de seu corpo. Então, é preciso dar um certo tempo para que a personagem se sinta confortável e possa se revelar verdadeiramente para o ecrã, sem vestir nenhuma armadura, se permitindo ser Solange. No momento em que isso é conseguido, toda a trajetória compensa.  

Nesse sentido, há um forte diálogo de Solange com As Linhas de Minhas Mãos, de João Dumans. Não à toa, o filme mineiro de Dumans abriu a mostra Aurora em 2023 neste Festival de Tiradentes, enquanto o paranaense foi o último a ser exibido. Em um movimento curatorial interessante que fecha este ciclo temático, percebe-se como ambos os projetos lidam com essa ideia da câmera enquanto um dispositivo que permite que sua respectiva protagonista se organize dentro do próprio caos interno e, dialeticamente, a partir de suas contradições, ofereça sua beleza ao mundo de espectadores. Mais do que isso, o espaço da câmera oferece uma espécie de mão amiga, parte de um cinema afetivo cujo palco dado à protagonista é um gesto contra a sua solidão. Inclusive, a câmera se permite ficar bêbada com a própria personagem e é fascinante a maneira como a decupagem se dá na cena do banheiro, pois a câmera aqui realiza um movimento cambaleante e tateante tentando acompanhar Solange em estado de embriaguez, o que torna a experiência também muito íntima para quem assiste a cena. 

Nathália Tereza e Tomas von der Osten entendem que a experiência humana também pode ser uma viagem sem explicação que é respondida pela interação do corpo com o espaço e dão pequenos toques de onirismo psicológico ao cenário naturalista dominante em boa parte de Solange. Dois momentos específicos se destacam, principalmente na maneira como abordam o espaço-tempo enquanto passagem relativa. Tanto a caminhada límbica de Solange pela parede ladrilhada, vista por várias quebras de eixo, quanto seu passeio na garupa de moto pela cidade são sequências-chaves para entender essa passagem do caos para uma harmonia interna da personagem. É lindo como na cena da moto a câmera inicialmente reflete apenas as luzes distorcidas da cidade em movimento, refletidas pelo espelho que Solange segura, e depois, após muito tatear, finalmente consegue enxergá-la na garupa.

Assim, a mise-en-scène de Solange sai de uma apreensão caótica e agressiva de espaço para suavemente encontrar uma unidade dançante, assim como a protagonista de mesmo nome. Há, por exemplo, um contraste enorme entre uma das cenas iniciais, em que a câmera balança da esquerda para a direita, acompanhando freneticamente a troca de desavenças entre Solange e sua amiga, para depois, a cena em que a câmera gira em 360º e acompanha apaixonadamente a dança da personagem, no momento em que ela está mais bem resolvida consigo mesma. Aqui, todo o peso do extraplano que parecia se colocar contra Solange dá espaço para uma leveza de quem voltou a ser feliz e está totalmente no controle. No fim, Solange não encerra exaustivamente as nuances de sua personagem ou seu universo de histórias, mas proporciona um libertador rito de passagem concentrado e personificado na pele de Cássia Damasceno.

 

*Filme visto na Mostra Aurora, dentro da Mostra de Tiradentes 2023, como parte da cobertura in loco do festival. Acompanhe nossa cobertura completa aqui.

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