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Um Animal Amarelo

Um Animal Amarelo

O Brasil e sua maldição

Wallace Andrioli - 26 de setembro de 2020

Um Animal Amarelo, de Felipe Bragança, é dedicado a Joaquim Pedro de Andrade. A referência meio óbvia aqui é Macunaíma (1969), adaptação oswaldiana que o cinemanovista fez da obra-prima modernista de Mário de Andrade. Como Joaquim Pedro em seu filme mais conhecido, Bragança busca uma espécie de síntese histórico-sociológica do brasileiro. E mesmo que passe longe da genialidade de Macunaíma, obtém resultados no mínimo interessantes, bastante sintomáticos de uma determinada forma de ver o país na contemporaneidade.

O primeiro capítulo, protagonizado por Herson Capri, é de longe o melhor. O ator interpreta Sebastião, avô do protagonista/alter-ego do diretor, um homem branco e bronco, garimpeiro, homossexual. Personagem que encarna a dimensão predatória originária do Brasil, o sujeito consumido por um impulso destrutivo e por delírios de grandeza e que carrega preso ao corpo um souvenir da violência perpetrada no passado.

Mas, apesar do enquadramento de Sebastião numa categoria explicativa da história brasileira, é nesse início que Um Animal Amarelo consegue imprimir humanidade no olhar macro proposto. A presença de Capri em cena é muito forte, carregando a tensão característica desse homem bruto, mas, ao mesmo tempo, verdadeiramente apaixonado por um jovem rapaz. É uma pena que o personagem seja logo abandonado, cumprida sua função no enredo. A forma como os acontecimentos desse segmento inicial se desenrolam também gera cenas muito boas, especialmente aquela de uma morte extremamente violenta.

Na sequência é apresentado o verdadeiro protagonista, Fernando (Higor Campagnaro), neto de Sebastião, cineasta carioca de classe média que vaga pela cidade como um quase zumbi, em busca de recursos para o filme que pretende fazer sobre seu avô. Bragança estabelece como pano de fundo discreto a ascensão de Michel Temer à presidência, após a derrubada de Dilma Rousseff, e com isso localiza Um Animal Amarelo na leva de filmes pós-2016 que tentam interpretar esse acontecimento político numa chave melancólica. O diretor busca promover em Um Animal Amarelo uma leitura da história do Brasil como maldição, resultada do mal de origem da escravidão. Daí a opção por levar a narrativa para Moçambique e Portugal, reconstruindo a rota do tráfico de escravizados e fazendo da reconexão de Fernando com o seu passado uma visita extremamente pessimista à formação de um país. O filme grita que não tinha mesmo como o Brasil dar certo.

O principal problema de Um Animal Amarelo é deixar esse esquematismo sufocar os personagens e a história. Por mais interessantes que alguns dos primeiros eventualmente sejam (Isabél Zuaa e Catarina Wallenstein, por exemplo), há pouca brecha para que eles ganhem vida para além das categorias que têm que encarnar no enredo. E isso considerando se tratar de um filme de viagem, que ganharia muito se mais aberto aos mundos que visita.

Há, enfim, o componente metalinguístico, que é uma faca de dois gumes. Por um lado, irrita por soar como reflexividade covarde, artifício para o filme se proteger através da autoironia, ou demonstração de uma pretensa esperteza. Por outro, introduz duas variáveis bastante interessantes: a impossibilidade, ou incompletude, do olhar melancólico de classe média em contextos de golpes políticos conservadores (muito presente na mesma fase do Cinema Novo na qual Um Animal Amarelo busca sua principal referência); e, a partir desse reconhecimento, a abertura para novas vozes, antes abafadas.

Para efeito de comparação: em Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, os dois homens verdadeiramente populares que tentam falar na célebre sequência do comício populista são brutalmente calados (Glauber é crítico a esse silenciamento, mas ainda assim a perspectiva que prevalece é a do intelectual progressista de classe média); aqui, é a narração de Catarina (Zuaa), a mulher moçambicana que em determinado momento atravessa o caminho de Fernando, que conduz a história, inclusive denunciando suas insuficiências.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para o 48ª Festival de Cinema de Gramado. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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