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Esta crítica fala apenas de “Fuga do Passado”, primeiro episódio de “Altered Carbon”. A crítica da primeira temporada está aqui.
O jornalista Armando Nogueira cunhou a frase “copiar o bom é melhor que inventar o ruim”. “Fuga do Passado” faz exatamente isso. Usando a base de “Blade Runner“ e misturando referências a ficções científicas como “Matrix“, “Elysium“ e “Ghost in the Shell“, a adaptação da Netflix para “Altered Carbon”, livro de Richard Morgan, aproveita premissas testadas para pontualmente acrescentar novidades, criando um mundo tão coeso quanto intrigante.
Primeiro quadro de “Altered Carbon”: o corpo que será de Kovacs numa estrutura similar a um útero. A gestação simbolizando a ausência de vida.
Em um futuro não especificado, a tecnologia permite que qualquer um grave sua consciência em um “HD externo” chamado Cartucho Cortical. Dessa forma, a morte do corpo físico é como um hardware quebrado: o software intacto é simplesmente transferido para outro receptáculo. Mas, como toda ficção científica que se preze, o avanço da ciência só reforçou o pior da Humanidade. Ricos vivem num mundo idílico, literalmente acima dos demais, enquanto pobres se espremem numa Bay City tão sórdida quanto a Los Angeles do filme de Ridley Scott.
O uso de plongées compara o caos do mundo dos pobres com a ordem tranquilizante do mundo dos ricos.
Takeshi Kovacs (Byron Mann e Joel Kinnaman) é o último Emissário, uma espécie de super-soldado com habilidades similares às do caçador de androides Deckard em “Blade Runner”. Perseguido por crimes cometidos numa rebelião, seu Cartucho Cortical é armazenado em Alcatraz para sempre. Até que o bilionário Laurens Bancroft (James Purefoy) o retira do limbo para investigar quem o matou e tentou destruir seu Cartucho Cortical, o que impossibilitaria um “backup” em outro corpo.
A estrutura de “Fuga do passado” é convencional para o espectador não se perder em meio a tantos conceitos incomuns. O detetive, de habilidades lendárias e há muito aposentado, é obrigado a voltar à ativa para solucionar um último caso. Contrastando com sua atuação à margem da lei, a policial obstinada Kristin Ortega (Martha Higareda) quer pegar Kovacs em alguma ilegalidade para tirá-lo de circulação da cidade que ela precisa proteger. Há até espaço para a mulher sedutora e perigosa: a esposa de Bancroft, Miriam (Kristin Lehman).
O design de interiores na mansão Bancroft tem um pé no futuro e outro na década de 1920.
Essa volta ao “neon-noir”, ainda fresca na memória do público por “Blade Runner 2049“, tem como destaque positivo a direção de arte, capaz de mesclar futuro especulativo com nostalgia trash. Uma inteligência artificial concierge de hotel imita a personalidade de Edgar Allan Poe, mas é capaz de atos de brutalidade similares às de outro bigodudo, o Bill “The Butcher” Cutting de “Gangues de Nova York“. O palácio nas nuvens dos Brancroft mistura o máximo da tecnologia que o dinheiro pode comprar com estátuas da Dinastia Ming. A edição de som (sem ela, o som fica sem edição) redefine atos como disparar com um revólver ou andar de carro, tornando aquela realidade ainda mais particular. A fotografia dá aos pobres a paleta azul opaca pela neblina e reserva aos ricos as cores quentes e a claridade do dia.
O mundo ordinário dos pobres em “Altered Carbon” é azulado e opaco. Exatamente por isso, o efeito da droga ingerida por Kovacs é estimular a percepção de cores vibrantes. Este é “o barato” de quem precisa encarar esta realidade sem interrupções.
Pontos que merecem a atenção para um eventual desenvolvimento ao longo dos outros nove episódios: o papel do Estado (aqui chamado ironicamente de “Protetorado”) como uma babá dos poderosos e um carrasco dos miseráveis; o abuso de autoridade e uso desproporcional da força pela polícia; e o conflito religioso-moral de um mundo onde a morte foi superada.
“Fuga do passado” é um bom ponto de partida para uma série que precisa vencer a barreira do “mais do mesmo” e surpreender o público de um nicho historicamente exigente. A aposta é alta, mas feita com segurança.