As Pequenas Margaridas (1966)

As Pequenas Margaridas (1966)

A autodestruição fílmica de Věra Chytilová

João Oliveira - 30 de setembro de 2020

“Se o mundo está tão mal, então seremos más também”

Em uma das primeiras frases de As Pequenas Margaridas, Věra Chytilová já expressa o seu descontentamento com a realidade em que ela vive. O primeiro diálogo entre as protagonistas ocorre após uma introdução que alterna a cavalgada de uma engrenagem industrial ao som de uma corneta de infantaria com imagens de bombardeios em guerras. A justaposição destas imagens evidencia a problemática do mundo contemporâneo: a produção de guerras em escala industrial, o fracasso da modernidade. Logo em seguida, vemos estas protagonistas, duas jovens mulheres, que indagam sobre os problemas do mundo e decidem que serão más pois a realidade é terrível. Em pouco mais de três minutos, a diretora expõe todo o seu desejo anárquico e disruptivo acerca do status quo: se o mundo é regido pela destruição, seu filme também será.

As Pequenas Margaridas é um filme pautado pela subversão. Věra Chytilová evita seguir qualquer padronização moral, estética ou formal. Apesar de possuir uma premissa aparentemente banal: duas jovens que resolvem pregar peças nos outros, sua mise-en-scène se encarrega de estabelecer esta atmosfera desordenada. Avessa às regras, a encenação traduz este anarquismo através da alternância das cores dos planos selecionados, que ora são coloridos naturalmente, ora filtrados por colorações não-naturais. O sequenciamento destes planos na decupagem exprime uma sensação de colagem de revistas devido ao uso constante de jump cuts. Aliada à montagem acelerada do filme, esta sensação cria dois sentidos: a avidez do modernismo industrial e a ingenuidade de uma brincadeira infantil. A forma do filme possui uma autoconsciência de seu contexto histórico, mas resolve zombar dele.

Utilizando-se de uma comédia de costumes, a autora explora a subversão inocente de suas protagonistas por meio da performance das atrizes para extrair um comentário social. Ivana Karbanová e Jitka Cerhová interpretam de forma caricata duas jovens adultas infantilizadas que se comportam de maneira adversa àqueles a sua volta, principalmente das mulheres. Seus comportamentos são vulgares frente ao pudor demandado de figuras femininas da época e suas vestimentas curtas e maquiagens marcantes também chamam a atenção por destoarem do padrão das demais. As câmeras de Chytilová se interessam em evidenciar o choque das pessoas com as atitudes das garotas, porém, os atos delas raramente são repreendidos de forma incisiva. A quase ausência de advertências para estas pegadinhas estabelece um caráter fantasioso à narrativa, mas o estranhamento das pessoas a volta nos convida a questionar até que ponto essa liberdade passará inalterada.

Há um elemento em comum na maioria das cenas das peripécias das duas personagens principais: a comida. É possível se extrair uma gama de significações para o uso dela no filme da diretora tcheca, mas a que mais chama atenção é a associação deste elemento ao poder e à liberdade. Normalmente, as brincadeiras das meninas resultam na obtenção de comida de maneira irrestrita, seja por maneiras ilícitas ao roubar bebida dos outros em um restaurante ou seduzindo homens para presenteá-las com um alimento. Dado o cenário de guerra demonstrado pela introdução do filme, a comida passa a simbolizar um objeto de luxo, visto que a escassez de recursos é um fator presente em países em conflito. Com isso, o sucesso das meninas em suas empreitadas adquire um duplo sentido: o primeiro, revolucionário, por se tratar de pessoas sem poder aquisitivo explorando privilegiados para obter sustento básico, enquanto o segundo diz respeito à liberdade de tomar as coisas por conta própria, independente da moralidade dos atos. O experimento da liberdade é prazeroso e as personagens se lambuzam nele, seja devorando comidas de forma animalesca ou se banhando em leite numa banheira.

A guerra é um fator vital para o subtexto do filme. A narrativa se interessa em demonstrar o militarismo como força de manutenção do status quo. Por mais que o conflito não se apresente no discurso direto, Chytilová faz questão de nos mostrar sua existência através de sutilezas, seja na trilha sonora ou nas atitudes das protagonistas. Estrutural, esta força atua como elemento praticamente invisível. Há uma cena chave que representa bem o poder coercitivo do exército: quando elas tentam em vão chamar a atenção de um camponês, as jovens começam a questionar se existem e só se reafirmam após marcharem pela rua bradando “eu existo, eu existo, eu existo”. O militarismo segue ordens, patentes e hierarquias e, portanto, a existência destas protagonistas afirmada pela marcha, reflete ela só se faz possível através de uma submissão às regras vigentes.

A partir disto, toda a liberdade que fora construída se rompe diante de nossos olhos. Evidenciando o caráter autodestrutivo da liberdade irrestrita, Chytilová literalmente desmonta e remonta seu filme e protagonistas como se fossem pedaços de papel de uma revista. Autoconsciente do dilema da liberdade, a diretora expõe dois finais que se contrapõem, mas convergem em um lugar comum: a catástrofe. “Houve só uma forma que elas poderiam terminar”, seja pelo gozo de uma guerra de comidas que destrói o banquete de um símbolo burguês, mas se esgota em um vazio existencial; ou pela submissão às regras vigentes. O texto da diretora, que invade a tela ao som opressivo de uma máquina de escrever demonstra que a liberdade feminina não é uma possibilidade e que a realidade vil irá golpeá-las mais cedo ou mais tarde. A diretora manifesta seu niilismo ao expor, pela segunda vez, as imagens de guerra explodindo seu filme, em uma espécie de conformismo melancólico, ela compreende que toda libertação é ilusória e que as engrenagens perversas do mundo seguirão a girar independente de uma subversão individual, as ações prévias das garotas ganham força política por romper barreiras, mas é o fim da brincadeira de criança.

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