Cavalo

Cavalo

Longa alagoano media riqueza temática e experimentações visuais

Igor Nolasco - 25 de agosto de 2020

É difícil falar sobre alguns filmes sem refletir sobre o contexto histórico que os envolve. Com “Cavalo”, de Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti, não é diferente. Expoente da safra da Mostra de Tiradentes que agora chega ao Festival Ecrã, o longa de 2020 surge cerca de vinte e cinco anos depois da deflagrada do período tido como retomada do cinema brasileiro. As leis de incentivo à cultura, sucedidas pela criação da Agência Nacional do Cinema e por editais e novas políticas de financiamento, não apenas institucionalizaram a produção de cinema no Brasil, como também permitiram que ela adquirisse maior pluralidade.

“Cavalo” aparece como o primeiro longa-metragem do estado de Alagoas realizado por meio de um edital. Se tal informação pode ser vista como uma espécie de responsabilidade; a de representar todo um estado em meio ao contexto de uma pós-retomada marcada por uma diversidade cada vez mais expansiva no que se refere a realizadores e estados brasileiros, Barbosa e Bagetti conduzem o que está em tela sem parecerem engessados pelo pioneirismo. Trata-se, antes de tudo, de uma produção livre em todos os sentidos. Todos se beneficiam dessa liberdade: o filme, os personagens e o espectador.

Não é gratuitamente que as cartelas de abertura remetem à criação do homem pelos orixás segundo o Candomblé. Em linhas gerais, a estrutura do longa cria seus personagens após partir, logo ao início, de planos que apresentam a natureza etérea. O que segue é um desenvolvimento dos sete dançarinos que protagonizam a ação em suas trajetórias através do corpo; não só da dança, mas de todo tipo de movimentação. A abordagem escolhida não faz questão de estabelecer parâmetros de realidade ou ficção para o que está em tela, o que é animador. Ao longo da história do cinema, uma série de filmes (com exemplares ótimos entre eles) que experimentou em tal território fazia questão de explicitar que estaria “borrando a fronteira entre documentário e ficção”. Com essa etapa assumidamente iconoclasta já superada, “Cavalo” não chama atenção para si mesmo nesse sentido, simplesmente é o que é. Ao se desprender desse tipo de preocupação, encontra um terreno fértil para desenvolver as possibilidades imagéticas que pretende atingir, alcançando-as de maneira louvável.

Ao partir das cartelas iniciais, a produção alagoana também já estabelece uma de suas temáticas principais, que é justamente a ancestralidade; não apenas através do viés religioso, como também do racial e do pessoal. A história do Brasil não deixa de estar na história de cada um dançarinos. O que ocorre ao longo das hora e meia de projeção é, em certa medida, uma síntese da experiência brasileira, que demonstra a cultura e a religiosidade do país através de práticas consagradas e as traz ao contemporâneo. Se em um determinado momento o espectador é lançado a uma sequência tranquila embalada pelo canto tradicional de “Cordeiro de Nanã”, em outros o rap torna-se o protagonista de uma série de sequências e dita a tônica e o ritmo das mesmas. Canções seculares e suas sucessoras atuais carregam em si as mesmas temáticas; raça, crença, passado, presente, vida, morte; e compõem um caleidoscópio que é entremeado por performances, danças e ritos arranjados de forma absolutamente complementar. Cada elemento em “Cavalo” orna com o anterior, expressões que a princípio podem soar como sendo díspares parecem logicamente relacionáveis e exemplarmente relacionadas.

O sincretismo (religioso e fílmico) não fica de fora. Práticas do Candomblé são intercaladas com momentos marcados pela presença do cristianismo, como o que mostra um rapaz em um momento de fragilidade sob a trilha sonora de uma canção evangélica. “Cavalo” não tenta fazer comparações entre uma crença e outra. Apresenta ambas como são: parte intrínseca da realidade do país.

Falar de história do Brasil é também trabalhar incontornavelmente a temática da escravidão. Aqui ela é justaposta com o conceito principal da liberdade. Há uma sequência em “Cavalo” na qual um homem corre livremente pela praia. Seus movimentos não aparentam seguir uma coordenação rigorosa, de forma que não há em sua postura algo que remeta a joggings matinais, tampouco a fugas de uma ameaça fora de tela. É uma corrida de movimentos bruscos, desenvoltos; uma corrida pela possibilidade da corrida, uma corrida da liberdade. O homem arfa e respira o ar em lufadas generosas enquanto o espectador acompanha o movimento de seus pés, que em um corte brusco são sucedidos pelas patas de um cavalo. Enquanto a câmera sobe, o restante da imagem se compõe: ao animal está acoplada uma carroça ocupada por pessoas, uma delas ocupando a função de cocheiro. A disparidade entre as duas sequências, unidas por posicionamento e por corte, dinamita qualquer tipo de dúvida: a liberdade alcançada após os séculos de opressão é algo do qual jamais se deve abrir mão; nenhum homem deve ser visto como animal de carga.

Há em determinado momento da produção uma fala que reflete um discurso de popularidade crescente em produções audiovisuais nos últimos anos (não só no Brasil, como no mundo), a de rever a ancestralidade de populações negras nos países das Américas não como uma ancestralidade que remeta imediatamente à escravidão, mas a uma que evoque reis e rainhas africanos e afro-brasileiros. Em “Cavalo”, Zumbi dos Palmares, Dandara e Ganga Zumba surgem como os avatares para a história de um povo, os verdadeiros pais fundadores brasileiros.

Se o longa de Barbosa e Bagetti é riquíssimo em temáticas, em quesito de imagens não fica nem um pouco atrás, oferecendo alguns dos planos mais esteticamente interessantes e estimulantes do cinema brasileiro contemporâneo. Tudo é regido majoritariamente por dois princípios, música e dança. Narratividade linear é a última coisa com a qual “Cavalo” se preocupa; e dessa organização clara em relação ao que escolhe priorizar surge um grande filme. Se há muito o cinema experimental mundial já superou a necessidade por uma narrativa clara linear (sendo essa superação um de seus princípios basilares), da mesma maneira o cinema experimental brasileiro também já virou tal página há décadas. Não que o longa necessariamente siga a mesma linha da obra de cineastas como Julio Bressane, mas ambos representam tipos de cinema que saem do óbvio e entregam trabalhos que constam entre os mais memoráveis de seus respectivos períodos (seja Bressane nos anos 60, 70 e até mesmo 2010 ou Barbosa e Bagetti agora, no começo dos anos 2020).

Em verdade, a produção alagoana parece aproximar-se de um conceito esquadrinhado pelo artista plástico e cineasta Hélio Oiticica, definido no início da década de 1970 como quase-cinema. Segundo o pesquisador Gonzalo Aguiar em seu livro “A Asa Branca do Êxtase, Arte Brasileira 1964-1980”, trata-se de um cinema “antinarrativo e ambiental” onde não há separação de “música-letra-dança-corpo”, sendo um “exercício experimental de liberdade”. “Cavalo” não está completamente inserido dentro dos conceitos oiticicianos, até porque não se propõe a fazê-lo, mas remete ao que há de melhor na arte de vanguarda brasileira.

Seja nos planos célebres que compõe integrando a dança à imagem cinematográfica, nas temáticas que aborda, em suas intertextualidades, sua abordagem meio quase-cinema, meio quase-documental, seu papel enquanto avatar de um estado que até então possuía pouca representação dentro do cinema brasileiro no que se refere à produção institucionalizada, sua posição dentro do contexto da diversificação geográfica da filmografia nacional na pós-retomada ou no conjunto de todos esses elementos e muito mais, “Cavalo” é uma abertura otimista para as possibilidades que podem ser testadas pelo cinema brasileiro ao longo da década.


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