Batman – A Piada Mortal

Batman – A Piada Mortal

Gustavo Pereira - 26 de julho de 2016

A Piada Mortal (Alan Moore) é considerada, juntamente com O Cavaleiro das Trevas (Frank Miller), uma das HQs definitivas do Batman, capaz de explorar traços da personalidade do Homem-Morcego e levá-lo às últimas consequências de suas próprias crenças. Não por acaso, Moore e Miller escolheram contar suas histórias com o protagonista envelhecido, cansado, disposto a resolver assuntos inacabados de uma vez por todas, como um executivo empenhado em assinar um grande contrato antes da aposentadoria. A diferença fundamental está no tom empregado por cada autor.

Igualmente brilhantes na arte de contar histórias, Moore e Miller encontram-se em pólos ideológicos opostos. Miller talvez seja o mais inteligente intelectual de direita vivo. Ou mesmo o único intelectual de direita vivo: sua obra reflete isso com vilões estereotipados, personagens masculinos extremamente robustos e o agora de volta à moda “direito de liberdade irrestrita”, que incentiva pessoas comuns a tomarem a lei em suas próprias mãos para que a Justiça seja alcançada, independente dos meios. Para Frank Miller, Batman é a personificação do sonho coletivo de Justiça, capaz de ignorar regras, procedimentos e direitos básicos em nossa gana de vencer o Mal,  uma entidade alheia a nós, que representamos o Bem. Quando acerta, Miller é genial, mas quando erra lança Holy Terror, uma HQ no mínimo xenófoba.

Já Alan Moore compreende Batman como uma válvula de escape para Bruce Wayne, a causa e o efeito de uma escalada de violência e criminalidade, vítima e algoz do ciclo vicioso que, ao combater, alimenta. Não existe vitória no final, apenas a amargura de uma guerra sem propósito.

Este preâmbulo é necessário para explicar que Alan Moore, autor de A Piada Mortal, não vê Batman como um herói, mas como uma anomalia, enquanto Frank Miller, autor de O Cavaleiro das Trevas, gostaria que Batman fosse real, para poder lhe dar uma medalha. O cinema, em geral, adota o caminho de Miller para retratar o Cruzado de Capa na mídia de massa. E, ao adaptar a melhor HQ de Moore em uma animação para cinema e home video, a Warner criou um Batman mesclado muito incoerente.

Brian Azzarello foi o roteirista encarregado de transpor a obra original para a nova mídia. Seguindo o caminho óbvio de copiar 98% dos diálogos e planos originais, a animação cumpre seu papel em apresentar o debate sobre a verdadeira origem da criminalidade, da violência e da loucura em nossa sociedade. O principal problema ocorre quando Azzarello, que já havia trabalhado de forma interessante com o Coringa em HQ autoral, cria um excerto à trama para contextualizar a relação entre Batgirl/Barbara Gordon e Batman/Bruce Wayne. O spin-off/intro é completamente descartável em si e compromete a construção dos personagens, principalmente do Batman, que é retratado por Azzarello como uma versão de Frank Miller: autoritário, machista, controlador e prepotente, a antítese do personagem capaz de olhar para seu nêmesis e encontrar nele tanto de si próprio. Quando a história precisa voltar ao original, a mudança na mentalidade de Batman se torna brusca e inverossímil. Toda a tensão sexual criada envolvendo Batman e Coringa também soa artificial, como um clichê de filme B.

A escolha de reeditar a dupla clássica de dublagem Kevin Conroy e Mark Hamill para os papéis de Batman e Coringa foi extremamente feliz, uma vez que o segmento das animações conta com um público mais fiel do que o dos cinemas e já acompanha os dois dando voz aos personagens desde a Série Animada dos anos 90. Quase todo cara com seus 30 anos lembra de Hamill como Luke Skywalker: sou um dos sete que o reconhece como “a voz do Coringa”.

Um ponto positivo é a fotografia (centro), com tons soturnos e sóbrios, próxima à concepção de Brian Bolland (acima), que abertamente não havia gostado da paleta de cores usada por John Higgins na época do lançamento (abaixo)

Outro ponto positivo é a fotografia (centro), com tons soturnos e sóbrios, próxima à concepção de Brian Bolland (acima), que abertamente não havia gostado da paleta de cores usada por John Higgins na época do lançamento (abaixo)

Alan Moore escreveu uma HQ para nos mostrar que criamos Coringas todos os dias ao mesmo tempo em que vivemos na beira do precipício que seria nós mesmos nos tornando um Príncipe Palhaço do Crime. Que nos sentimos confortáveis individualizando culpas quando somos coletivamente responsáveis pelo mundo caótico em que vivemos. Ao ignorar o cerne da obra na adaptação, a Warner enfraquece sua mensagem e transforma uma história memorável em entretenimento descartável. Absolutamente aquém do original.

 

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