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A Bela e a Fera

A Bela e a Fera

Gustavo Pereira - 10 de março de 2017

Trazer para o live action os clássicos animados parece ter se tornado uma opção mercadológica interessante para a Disney. Entre erros e acertos, Alice no País das Maravilhas, Malévola e Cinderela pavimentaram o caminho (e arrecadaram boas bilheterias) que viabilizou A Bela e a Fera, talvez o conto de fadas menos ortodoxo da multinacional da Califórnia. Antes de criticar a suposta falta de criatividade do estúdio, ressaltemos que esta não é uma simples reprodução com atores “de carne e osso” da animação de 1991.

Sim, A Bela e a Fera consegue ser relevante no século XXI. Revisando pequenos deslizes do original e renovando o discurso principal, traz à pauta temas fundamentais para a vida em sociedade, como a igualdade de direitos entre homens e mulheres. E o mais importante: atraindo crianças para o cinema.

Emma Watson como Bela: ela não veio ao mundo a passeio

Após uma cena introdutória ligeiramente corrida (mais dois minutos ambientariam melhor o expectador), na qual o príncipe e sua maldição são apresentados, temos a primeira peça musical do filme. Quem reclamou que La La Land teve poucas músicas, em A Bela e a Fera poderá se fartar. A já divulgada “Bonjour” faz um uso interessante do recurso eternizado pela própria Disney chamado “Mickey Mousing”, onde a ação tem um equivalente na trilha. Considere infantil ou mesmo preguiçoso, a Disney pode usar do seu “Mickey Mousing” tanto quanto o George Foreman pode usar do seu grill.

Com tão pouca distância entre os filmes, a comparação com La La Land é automática. Há um aspecto em que Bela se destaca positivamente: as canções não são meras suspensões do tempo/espaço para ilustrar o sentimento dos personagens, mas também servem para dar ritmo e desenvolver quem não tem muito tempo de tela. O antagonista Gaston é perfeitamente explicado em uma música, “poupando” filme para o desenvolvimento da Bela e da Fera.

Gaston é aquele cara que chega nas mulheres achando que elas adoram grito, braço torcido e bafo de pinga e se ofende quando elas falam que detestam

A escolha de Emma Watson para o papel principal se mostra acertada porque dá à personagem o prestígio pessoal da atriz, que ergue a bandeira do feminismo publicamente e se tornou uma referência para meninas e jovens mulheres desde os tempos de Hermione Granger na franquia Harry Potter. Bela é, como seu pai Maurice diz, uma mulher à frente de seu tempo. Os aldeões a consideram “estranha”. Emblemática a cena em que ela ensina uma criança a ler. A cenografia ajuda a criar um ambiente claustrofóbico com uma aldeia pequena, onde os habitantes estão prestes a esbarrar uns nos outros o tempo inteiro. Paradoxalmente, a taberna é ampla, o que reflete uma verdade inquestionável: pessoas brutas e rústicas “se espalham” onde podem beber muito e falar alto.

Quando seus vizinhos te oprimem mais do que uma cela

Quando ela decide trocar de lugar com seu pai na prisão da Fera, mais do que um sacrifício, ela está racionalizando que já vive na prisão metafórica de um mundo que insiste em não permitir que ela haja como deseja. Gaston lhe diz que “mulheres que não se casam viram mendigas quando os pais morrem”. Aceitar que Maurice cumpra a pena em seu lugar não a libertaria desta prisão. Ela está apenas simplificando as coisas.

Sua dinâmica com a Fera, diferente da apresentada no original, não abre possibilidade para ser interpretada como um caso de Síndrome de Estocolmo. É uma relação bem construída e que se desenvolve nos pontos em comum que dividem. Boa parte da aceitação para que a prisioneira se apaixone pelo seu captor deve ser creditada a Dan Stevens, que contracenou em pernas-de-pau (a Fera é uma criatura de CGI e, apesar de convincente, confesso que senti uma oportunidade perdida para a Maquiagem) e trabalhou, de forma acertada, em uma voz completamente diferente da sua versão humana. A Fera consegue assustar e provocar empatia. Créditos ao diretor Bill Condon.

É impossível ignorar o elenco de apoio. Luke Evans dá vida a um Gaston verdadeiramente odioso – quando visto de perto, muito mais feio do que “odiosa” Fera. Seu companheiro LeFou tem um arco de desenvolvimento muito claro, coerente e bonito. Josh Gad está de parabéns e o cinema que vetou a exibição do filme porque seu personagem é gay não merece menos do que um caloroso boicote.

O maior pesadelo de machistas homofóbicos é uma produção que fatalmente chegará na marca de 1 bilhão de dólares em bilheteria com uma mulher altiva e cativante e um gay não-estereotipado e carismático. A Disney não poderia ter acertado mais.

#SomosTodosLeFou

A Bela e a Fera também conta com um elenco valoroso para a criadagem da Fera, encantados na forma de objetos. Ewan McGregor é o Lumière definitivo. Despachado, sensível e romântico, forma uma ótima dupla de alívio cômico com Horloge, dublado por aquele que deveria ser tombado como patrimônio cultural da humanidade Ian McKellen. Que privilégio ver Obi-Wan Kenobi e Gandalf juntos num filme da Disney!

Pra tirar o famoso 10, faltou pouco: a fotografia, que acerta quando aposta em planos abertos que valorizam a já elogiada cenografia e contrastam a paleta escura com o clássico vestido azul de Bela (sóbrio, porém esperançoso), insiste em planos médios que diminuem esse contraste. As paisagens criadas por computador convencem à noite, mas parecem falsas à luz do dia. Bill Condon, que tem na filmografia o elogiado Mr. Holmes e a abominação Amanhecer, da “Saga Crepúsculo”, investe em cenas de dança com muitos cortes e movimentos pouco fluidos (mais uma vez, a comparação com Damien Chazelle é inevitável, com este se saindo muito melhor), o que facilita a vida dos atores, mas compromete em exibir coreografias mais elaboradas, o que era de se esperar.

Mesmo com a montagem se tornando um pouco caótica no seu clímax, A Bela e a Fera supera estes pequenos problemas técnicos para se tornar, até aqui, o melhor “novo” conto de fadas da Disney. De uma mulher que não é uma princesa, que não pede para ser salva, que resolve os problemas sozinha, mas se permite amar um homem.

Que inspire muita gente por aí!

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