A Freira e a Tortura (1984)

A Freira e a Tortura (1984)

Ozualdo Candeias e David Cardoso se debruçam sobre temas de perseguição política

Igor Nolasco - 19 de novembro de 2020

O ano de 1984 representa o desfecho de um momento único na filmografia de Ozualdo Ribeiro Candeias. David Cardoso, que se tornaria nacionalmente conhecido como ator, diretor e produtor de comédias eróticas (“pornochanchadas”) e produções pornográficas ao longo das décadas de 1970 e 1980, fora protagonista de “A Herança” (1971), ambicioso projeto de Candeias que transpõe o “Hamlet” de Shakespeare para o Brasil rural, ainda por cima em um filme mudo. Juntos, os dois repetiriam a parceria em “Caçada Sangrenta” (1974) e, dez anos depois deste, em “A Freira e a Tortura”. Cardoso é produtor de ambos.

O elo que une duas figuras aparentemente tão distintas é, inevitavelmente, a Boca do Lixo. A região do centro paulistano servia como ponto de encontro entre cineastas independentes (com poucos recursos e muitas ideias), não obstante sendo também um reduto dos produtores de filmes eróticos ou pornográficos (e é importante manter a distinção entre ambos – “pornochanchada” não é “pornô”). Entre esses dois polos circulavam técnicos e realizadores, e a aproximação entre Candeias e Cardoso, por mais inusitada que possa parecer em um primeiro momento, é natural quanto posta sob essa perspectiva. Não custa lembrar que o ícone sexual já havia anteriormente participado de toda a sorte de produções; de filmes de caráter mais reflexivo e intelectual, como “Noite Vazia” (1964) e “O Corpo Ardente” (1966), ambos de Walter Hugo Khouri, a sucessos comerciais pensados para um público familiar, como “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” (1968), de Roberto Farias.

Se a impressão dada é que uma união entre os dois resultaria em um trabalho mais pendente ao erotismo do que o usual na obra do realizador, essa noção chega a um ápice em “A Freira e a Tortura”. A mera menção ao título já é reminiscente da declaração dada por Antônio Polo Galante, célebre produtor da Boca, de que no primeiro contato com o circuito exibidor local (composto por salas simples, com ingressos vendidos a baixo custo, destinadas ao proletário paulistano), os filmes ganhavam um espaço nas telas de cinema pela mera menção de um nome que evocasse noções remotas de erotismo ou violência – para o circuito local, os dois, por vezes, se confundiam.

A divisão dos papéis principais na parceria final Candeias-Cardoso não demora muito a ser delineada; Vera Gimenez é Joana, professora que também é freira, sob a justificativa de que, tendo teto e comida de graça, pode exercer trabalhos de caridade sem se preocupar com dinheiro; David Cardoso é Rui, inescrupuloso chefe de polícia que é escalonado para sequestrá-la, interrogá-la e torturá-la na intenção de lhe retirar informações – papel arquetipicamente cardosiano, no qual o ator pode incorporar com requintes de crueldade seu jeito malandro que estaria presente em inúmeras “pornochanchadas” estreladas pelo mesmo, porém aqui com um viés crítico latente impresso pela visão de Candeias. Ainda que em um primeiro momento o personagem pareça uma cômoda zona de conforto para Cardoso, talvez seja um dos papéis que mais exige do mesmo enquanto ator, junto com o que faz em “Amadas e Violentadas” (1976), giallo à brasileira de Jean Garrett.

Com esse cenário armado, seria fácil para o longa cair nos fáceis subterfúgios utilizados recorrentemente à época – dedicar toda a sua duração a submeter a freira/professora a uma série de intermináveis torturas físicas e psicológicas. No entanto, como poderia suspeitar um espectador anteriormente familiarizado com a sensibilidade latente em toda a obra de Candeias, presente já em seus curtas iniciais e que vai de seu primeiro longa, “A Margem” (1967), até seu último, “O Vigilante” (1992), evidentemente não é o caso.

O cineasta conduz “A Freira e a Tortura”, em forma, seguindo parcialmente os mesmos procedimentos presentes em seus demais longas. Encontra como ambiente para desbravar sua câmera uma comunidade empobrecida, na qual são latentes as marcas da violência, e demonstra legítimo interesse por seu cotidiano, sua população e suas idiossincrasias, explorando-os por meio da linguagem em um olhar que ali captura o  prosaico, o belo, o feio e o trágico. Apesar disso, não parece encontrar espaço para fazê-lo com o afinco que emprega em projetos como “AOpção” (1981) ou “As Belas da Billings” (1986).

Invariavelmente, sobretudo em sua metade final, o filme parece se aproximar de sequências que abordem o sexo ou a violência mais frontalmente como uma maneira de se adequar às exigências feitas por uma produção cardosiana. Em tais momentos, o longa acaba cedendo ao protocolar, o que no entanto não tira a força do conjunto (sobretudo quando ele se encerra com uma belíssima sequência final, de sensibilidade ímpar e que une o melhor do estilo de Candeias e da visão comercial de Cardoso).

Ademais, as discussões políticas em “A Freira e a Tortura”, presentes do começo ao fim do filme e sinalizadas mais abertamente em determinadas sequências-chave, são suficientes para compensar quaisquer concessões que Candeias teria precisado aceitar para dar cabo ao projeto. Unidas à visão autoral que faz do cinema do realizador verdadeiramente único, mesmo entre o movimento do Cinema de Invenção, tornam o filme digno de nota e reflexão, mesmo que seja um título comparativamente fraco em meio a uma filmografia tão excepcional, como é a de seu diretor.

Lançado na etapa final da dita “abertura”, nos anos finais da ditadura civil-militar brasileira, “A Freira e a Tortura” é, em discurso, basicamente um filme sobre crimes políticos. Já há indícios disso em sua premissa básica – um delegado de polícia que recebe a missão de torturar uma professora – mas tudo é amplamente desenvolvido ao longo da minutagem.

Ora, talvez o professor fosse a figura que mais explicitamente representava o subversivo sob os olhos da ditadura (bem como sob perspectivas politicamente conservadoras, em geral). Intelectual, com tendências à esquerda, engajado e com um ambiente de trabalho que lhe permitiria a persuasão de dezenas ou mesmo centenas de pessoas, o arquétipo professoral não tardava a ser prontamente rotulado como comunista, mesmo que não o fosse. Como se sabe, o número real de professores sequestrados, torturados, mortos e cujos corpos foram escondidos pela ditadura supera em muito o que consta nos registros oficiais.

No crepúsculo daquele período, cujos ecos jamais deixaram ou deixarão de reverberar no Brasil, Candeias enfoca sua trama não apenas em uma personagem que exerce o ofício de professora: ela também está sob o hábito de uma freira (e figuras católicas, mais notoriamente frades, tiveram um papel ativo nos movimentos de resistência à ditadura) e ativamente expressa seu desejo de trabalhar em contato direto com populações carentes, de fazer caridade. Está aí construído o perfil tipicamente subversivo de acordo com os critérios do regime militar. Ao interrogá-la, o policial vivido por Cardoso não deixa sutil a visão que tem da professora: alega que evidentemente seria o tipo de pessoa a esconder alguma coisa, ocultando algo ou alguma informação. A perspectiva do personagem reflete a de uma parcela majoritária de sua classe à época.

Ainda que seja um título menos comentado na obra de Ozualdo Candeias (que por si só já é desconhecida pelo grande público, e que entre os aficionados pelo cinema brasileiro tem como expoentes mais festejados “A Margem”, “A Herança” e “Meu Nome é Tonho” [1969]), “A Freira e a Tortura” não deixa de ter, em seu bojo, os elementos de linguagem que caracterizam o melhor dos trabalhos de seu autor, e traz em suas ideias um inusitado elemento político – integra o rol dos filmes realizados durante a ditadura que retratam (direta ou indiretamente) a tortura rotineiramente praticada pela mesma, ao lado de longas como “Jardim de Guerra” (1968), “Hitler III Mundo” (1968), “Matou a Família e Foi ao Cinema” (1969) e “Pra Frente, Brasil” (1982). Tanto nesse sentido quanto em outros que abarca (o Cinema de Invenção, o cinema erótico), pode render um estudo de caso bem diverso sobre o cinema realizado durante a ditadura civil-militar brasileira.

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