Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

“Alzheimer”, “Quintal” e “Rua Ataléia”

“Alzheimer”, “Quintal” e “Rua Ataléia”

Os lampejos do cotidiano e da memória

Egberto Nunes - 12 de abril de 2021

Caminhar pelos trajetos da Sessão de Abertura da 1ª Edição da Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte é posicionar o compasso entre e o deslumbramento e estranhamento. O trio de curtas da Filmes de Plástico se conversam nesse meio tempo e envolve a espectatorialidade na consciência da memória, na nossa fuga e na nossa permanência do espaço (in) comum e de um lampejo que convida a abraçar o diálogo, ao registro do espaço íntimo da memória.

Falei respectivamente de Alzheimer (2009), Quintal (2015) e Rua Ataléia (2021). Todos singulares cuja semelhança mais concreta é a da presença da atriz homenageada, Maria José Novais Oliveira. Mais conhecida como Dona Zézé, ela é mãe de André Novais Oliveira, que divide a direção dos curtas com Gabriel Martins e Maurílio Martins em Alzheimer, e Renato Novais Oliveira, que participa no elenco de Rua Ataléia e também na realização do documentário Nossa Mãe Era Atriz, teaser exibido na Sessão, que não precisa de explicações. 

Na curadoria, a atriz-personagem vai de controladora do movimento à companheira da atenção e do cuidado. Em todos os filmes, ela nos captura, sequestra nosso olhar pelo corpo ou pela voz nos instantes em que aparece, compartilhando conosco a busca na memória das imagens. Seja numa narrativa experimental simples de 1 minuto, no realismo mágico do cotidiano ou na captura da escuta e dos afetos na falta de energia.

Busca essa que acaba sendo própria do encontro com os filmes. Não que esse exercício não se repita em outras obras, mas nesse conjunto é valorizada a permanência desse gesto. Alzheimer não se reduz exatamente a essa busca, mas vai de encontro ao seu próprio trajeto e se posiciona como ferramenta primordial do cinema. Zézé aqui me enganou. Me fez acreditar que era um documentário. Ledo engano, mais uma artimanha da performance tão natural, que é aliada do minuto e da cumplicidade do local. A rapidez da feitura, das imagens e a complexidade com que se entrega o texto – sobre o registro do que se vê, para não esquecer – e a sua intenção marcam e energizam o seu título: Alzheimer, que finaliza tão rapidamente, mas que não nos permite esquecer.

 A situação que recai ao esquecimento e a “mágica” (parafraseando a atriz no teaser de “Nossa mãe era atriz”) de capturar essas imagens. O movimento dos retratos na paisagem da casa se voltando para a fala, a marcação e a repetição. O que deixamos de registrar com o tempo, agora em outra dimensão, outro regime. Compreendemos daqui a função, pelo título, mas Zézé vai além, finaliza o dia 2 na sua repetição e cabe a nós estendermos o primeiro minuto do encontro.

Esse dia 2 de Zézé recai em Quintal, que intitula um dos seus estrelatos. Zézé, agora com  Norberto, é total nossa captura. Se o estranhamento é parte do curta, é porque ele divide espaço com a dinâmica tão cotidiana e amorosa dos protagonistas, onde um portal se abre no quintal e Norberto vira nossa chave e vai e volta da onde quer que foi a tempo de assistir televisão com sua companheira depois da mesma fechar um contrato para virar sócia de uma academia. A chave é viver nessas investidas de expectativas, nos acontecimentos que só acontecem e mais nada, na imagem que é ficção científica e é amadurecimento, descoberta, é comédia e drama. E quando nos lembramos? Como retratamos os espaços tão estranhos de longe e tão presentes no cotidiano? São pequenas reviravoltas que vibram com a gente e desafiam o olhar acostumado, sempre à espera de algo ou da fagulha que vai cristalizar “o nada” ou da ação que vai transformar todo o espaço-tempo. É o que também persegue e rasteja pelos outros filmes da seleção. E, nisso, em Quintal, André, Zézé e Norberto, transformam a experiência e julgam o olhar estranho a cada sequência marcante, dignas de “entrar para a história do cinema brasileiro contemporâneo” – a espreitada do quintal e a resistência contra a ventania. 

Voltar nelas, seja como for, é sempre um exercício de deslumbramento, um divertido choque e admiração. Da seleção curatorial, é o fôlego, é o salto. E a chegada, no fim, é com um respiro e mais um engano no decifrar das imagens, atentando cada vez mais para escuta e para a consciência da memória. Nas imagens de Rua Ataléia, é o modo de produção que contorna sua forma, um vai indicando o outro desde o início da produção: do clarão da tela preta, para um plano do bairro noturno escurecido, de repente, há luz; que vão se deformando, ampliando como pontos brancos desconhecidos na tela preta, as vozes familiares vão aparecendo e temos a noção da falta de energia pelos objetos transmissores da luzes deformando parados na casa, servindo como a própria iluminação dos cômodos. Zézé aqui vem de longe, de início, fora de plano, com a voz distante do cuidado com Norberto. Algumas sequências depois, quando novamente somos capturados, é ela que tem o controle, ela exerce sua vontade e nos leva pelos atos da casa. Mesmo se suas primeiras falas em Alzheimer eram sobre a família não ter mais o hábito de tirar fotos, e sendo assim, ela resiste filmando, por conta da doença – aqui é parte do meu engano – e do filme. É em Rua Ataléia que as imagens voltam para o seu olhar, enquanto a mesma tenta recordar dos personagens das fotografias. Nós temos dificuldades. Tudo escuro. Mas ela está iluminada. No pequeno espaço, entre as descrições, lembranças, cuidados de Norberto e André, reside a magia. Zézé vive. 

 

Topo ▲