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Bela Vingança

Bela Vingança

O anti-rape revenge

Claudio Gabriel - 24 de março de 2021

Popularizado dentro do cinema popular americano com “A Vingança de Jennifer”, de 1978, o subgênero do rape revenge ganhou espaço em uma ideia bem masculina da produção da sétima arte. A ideia é bem simples: na história, uma mulher será estuprada (geralmente não por apenas um homem) e irá em busca de vingança. O longa dos anos 70 de Meir Zarchi tem uma clara ideia de desenvolvimento do estupro como algo quase catártico, dando espaço para uma sequência de 30 minutos mostrando o crime acontecendo. Passando o período e chegando até os anos 2010/2020, “Bela Vingança” parte de uma proposta um pouco diferente para efetuar o mesmo efeito do subgênero do suspense: o passado pouco importa para a estrutura narrativa, mas sim o presente.

Por isso mesmo, logo nas cenas iniciais com a protagonista Cassandra (Carey Mulligan) fingindo estar bebâda para levar os homens a abusá-la e os punir depois, não são em um tom sombrio. A diretora e roteirista da obra, Emerald Fennell, usa e abusa de uma explosão de cores, quase trabalhando uma diversão para a personagem principal da situação. Pouco importa uma condição de sofrimento masculina por ali – muito atrelada a essa visão diferente do cinema -, fazendo mais sentido o prazer nessa vingança de Cassandra. A trilha sonora extremamente pop só reforça mais esses elementos.

Outro filme dessa nova leva de produções buscando novas visões para o rape revenge, “Vingança”, que também é comandado por uma mulher (no caso, a cineasta Coralie Fargeat), absorve mais uma visão catártica para os acontecimentos. O estupro, filmado sobre forma de uma violência profunda, também se aglutina na tensão que será colocada nos momentos seguintes. O que Fennel busca diferente com “Bela Vingança” é justamente o olhar para um caminho contrário a essa narrativa tradicional do suspense. Como dito anteriormente, pouco importa o passado, o que aconteceu, e sim como a protagonista irá usar de sua perspectiva no presente. Dessa maneira, ela é capaz de se apaixonar, de julgar e de viver sem medo de explorar sua sexualidade. Enquanto tais atitudes poderiam se transformar em um trauma, para ela viram quase uma prevalência.

É interessante como a obra chega até a abandonar seus elementos mais clássicos dentro do meio da duração. Todo o relacionamento proposto com Ryan (Bo Burnham) se transforma também em uma válvula de espace para sua busca eterna por vingança. Todavia, ele também está atrelado ao passado de cicatrizes, em que ocorreu o estupro ante Cassandra, na faculdade. Por isso mesmo, é curioso como a direção traz um olhar sempre fluído por parte da personagem, que parece nunca bem entender em que caminho ir com suas atitudes. Será que deveria realmente continuar sua luta contra os homens ou deveria abraçar um novo momento da vida? O conflito psicológico que permeia boa parte da trama durante o segundo ato abre possibilidades diversas para a forma sempre imprevisível de reagir com Cassandra. Mesmo assumindo um lado, será que ela poderia seguir com outro?

Em certos momentos, o longa quase explora um lado adolescente bem abraçado. Em certos instantes, chega a lembrar uma brincadeira sobre o lado sensual e sexual proposto com a protagonista, rememorando a dubiedade provacada em “Lolita”, de 1962. Porém, diferente daquele, além do caráter moral, há algo trágico também envolvido. E essa tragédia é necessária a uma construção dramática em que a obra sempre está tateando: o medo de assumir seu passado. Emerald Fennell poderia dar espaço a um flashback, por exemplo, mas decide realmente julgar e trazer atitudes que ocorreram como parte do presente, como se aquele mundo nunca alterasse. Dessa forma, a possibilidade de esquecer tudo perante o novo namorado é, do mesmo jeito, uma maneira também de se testar. Será possível apenas deixar tudo vivido como uma memória a ser esquecida ou é necessário também enfrentá-la?

Tais conflitos levam a “Bela Vingança” buscar um clímax nada catártico e sim bruto. Se em “A Vingança de Jennifer” era mais interessante buscar um olhar de confronto que Jennifer Hills (Camille Keaton) viveu – um trauma onipresente em sua vida a partir dali -, no filme de 2020 a busca é mais por explorar um terror realista. Cassandra pode desenvolver seus planos e suas buscas de vingança de forma extremamente precisa, porém seus traumas podem retornar a qualquer instante. Trazendo esse detalhe, a sequência final do longa é angustiante e utiliza da tensão proposta até ali. Enquanto víamos o colorido tomar forma, de maneira bastante lúdica e adolescente, a frieza do mundo buscava espaço. Assim, Cassandra se encontra inteiramente colorida em uma cama, enquanto o mundo a sua volta tem apenas a brutalidade.

Fennell busca claras interlocuções com a cena derradeira de “Corra!”. Porém, se na obra de Jordan Peele o racismo era um tratativo de sobrevivência contra não apenas indivíduos, mas também toda uma institucionalidade, aqui as vítimas são as mulheres. E elas não lutam apenas contra homens, mas também um sistema de dominação histórico, que está em todos os detalhes. A vingança é possível? Talvez. Porém, ela está dentro de muitas consequências.

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