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Centro

Centro

Uma viagem pelo espaço, mas também pelo tempo

Igor Nolasco - 17 de julho de 2021

“Eu fui fazer um samba em homenagem à nata
da malandragem que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
que aquela tal malandragem
não existe mais”
­

— “Homenagem ao Malandro” (Chico Buarque)

Que assistir a um documentário que se propõe a esquadrinhar a geografia de determinado espaço urbano é entrar de cabeça naquele ambiente, isso é evidente. Mas também é se submergir em um determinado tempo – sobretudo quando o espaço em questão é a região central de uma cidade, que para além de ser um polo de alta circulação graças aos que ali trabalham e estudam, também abriga museus, centros culturais, terreiros, bares, praças, parques, cinemas e distritos da boemia. Tal é a situação do centro do Rio de Janeiro, objeto do filme “Centro”, em cartaz no Festival Ecrã até o dia 25 de julho. Dirigida por Peter Azen, carioca radicado em Nova York, a produção informa já em suas cartelas iniciais que foi rodada em setembro de 2019. Ver o centro do Rio, que é um bairro gigantesco (com direito a ramificações e sub-bairros) através de uma lente que nos transporta para 2019, estando em 2021, é como ser atirado por uma janela a um passado não tão distante, mas que já parece pertencente a outra realidade.

No samba “Homenagem ao Malandro”, Chico Buarque, em seu disco autointitulado de 1978, narra a decepção de um eu-lírico que desce à Lapa, sub-bairro do centro, e não encontra a tradicional malandragem de chapéu panamá, baralho no bolso e navalha na mão. Em sua canção, o compositor faz uma antítese da visão romântica que a geração contracultural carioca da década de 1970 tinha acerca da malandragem dos anos 1930, cujo reduto era justamente a Lapa. Ao vê-la em 2019, em “Centro”, o espectador pode se encontrar em situação semelhante, ainda que não completamente análoga: ver, em 2021, a Lapa repleta das aglomerações que lhe davam vida, com barracas de comida e bebida, multidões se reunindo em frente aos bares, homens e mulheres de copo da mão (ou na boca) e obras retocando as grades do Circo Voador, casa de shows tradicional do lugar, é sentir um misto de aflição ante ao volumoso agrupamento de gente e nostalgia, saudade desse tipo de situação.

Ambos os sentimentos conflitantes dessa mistura estão, claro, relacionados à pandemia de COVID-19, que a partir de março de 2020 tornou aglomerações em geral perigosas e evitáveis ao máximo. As destinadas ao lazer, como as da Lapa, passaram, então, a ser completamente descartadas. A pandemia interfere mesmo na maneira como assistimos ao filme: o Festival Ecrã, antes evento presencial, está hoje sendo realizado de maneira completamente virtual pelo segundo ano consecutivo. Esses fatores extrafílmicos são incontornáveis para uma experiência espectatorial envolvendo o longa nesse momento. E mesmo para quem não conhece o Rio de Janeiro, não estando, portanto, familiarizado com os espaços registrados, assistir às imagens presentes no documentário de Azen pode evocar esse contraste entre como vivíamos há dois anos atrás e como vivemos hoje – sem espaço para as farras tão bem registradas naquela noite de setembro de 2019.

“Centro”, segundo informado na cartela de abertura (e na sinopse do filme fornecida pelo Ecrã), foi completamente rodado ao longo de um único dia. E sua montagem de fato evoca um senso de cronologia e linearidade, começando de manhã e terminando de noite. Azen empreende um competente trabalho em explorar todas as ramificações possíveis do centro da cidade e de seus sub-bairros: vai das ruas principais aos distritos de camelôs; explora interiores, adentrando lojas de tecido ou mesmo o histórico e luxuoso prédio da confeitaria Colombo. Ao invés de capturar o movimento desses locais deixando uma câmera fixa nas ruas, ou mesmo através de câmeras mais soltas – como fez no mesmo bairro, por exemplo, Milena Manfredini no documentário em curta-metragem “Camelôs” (2018) – o cineasta opta por uma abordagem diferente: todo o “percurso” (se encararmos o filme como um processo de flanar pelo centro do Rio de Janeiro) do longa é calcado através de imagens estáticas, como, propriamente, fotografias, organizadas sequencialmente dentro da proposta de continuidade do projeto. Em dados momentos, a sobreposição de diversas imagens de um mesmo local chegam a causar forte senso de fluidez, onde quase se enxerga o movimento, remetendo a trabalhos como “Salut Les Cubains” (1963), de Agnès Varda.

Através de paisagens sonoras ricas, os locais fotografados, já suficiente vívidos graças a um olhar aguçado e uma montagem afiada, ganham verdadeira vida. Em dados momentos, se entreouvem falas, conversas, e mesmo monólogos, como o de um artista em frente à Igreja da Candelária, que discorre sobre a região do centro tradicionalmente conhecida como “Pequena África”. “Centro” invariavelmente se torna mais cativante para os espectadores que tem, com o centro do Rio, suas próprias histórias, e sentem especial carinho por um ou outro local visitado pelo documentário, como o pátio e os jardins do Museu de Arte Moderna, o Bar Gengibre ou a fachada do Centro Cultural Banco do Brasil. Apesar disso, não se torna dependente dessas relações pessoais que um espectador possa porventura ter com o espaço: é suficientemente bem sucedido na construção de um ambiente rico em detalhes, texturas e sons ao transitar por aquelas ruas, que pode interessar a públicos de qualquer lugar na forma como propõe um passeio pelo centro de uma das cidades mais conhecidas do país, por meio de uma minutagem enxuta e uma abordagem direta.


Para acompanhar nossa cobertura completa para o 5º Festival Ecrã, clique aqui.
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