Cow

Cow

Passagem ao literal

Wallace Andrioli - 14 de fevereiro de 2022

A imagem da imolação de uma vaca foi inscrita na história do cinema por Sergei Eisenstein numa chave metafórica, em A Greve (1925). O sacrifício do animal como analogia para o massacre da classe trabalhadora pela burguesia. Posteriormente, ressurgiu como referência com sentidos próximos a esse: em A Viagem da Hiena (1973), de Djibril Diop Mambéty, remetendo à violência do colonialismo europeu na África, e em Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, à execução do antagonista Kurtz (Marlon Brando) por um emissário do exército americano em meio à Guerra do Vietnã.

Cow, de Andrea Arnold, aposta na literalidade ao retomar o mote da violência contra bovinos. O filme acompanha o cotidiano de um rebanho de vacas leiteiras numa fazenda no Reino Unido, enfocando especialmente duas, Luma e uma de suas bezerras. A câmera da diretora se imiscui entre os animais, estabelece uma lógica de aproximação até impressionante, considerando as possíveis reações hostis desses últimos a ela. Mas trata-se de um rebanho em grande medida apaziguado pela mecanização de sua vida e por uma rotina ditada pelo ritmo da produção industrial de leite. A câmera de Arnold, ali, é só mais uma máquina em meio a tantas outras sempre presentes.

A diretora fez um documentário que aponta para a crueldade do tratamento dispensado aos animais pela indústria alimentícia sem recorrer ao didatismo ou ao denuncismo sensacionalista. Não há, por exemplo, qualquer percepção de sadismo por parte dos homens e mulheres que exploram diretamente as vacas. E pouco é dito por meio de palavras, nada que aponte para uma grande interpretação do tema. A forma escolhida por Arnold é a do cinema direto, da observação meticulosa que propicia a emergência da crítica a partir das próprias imagens, conforme elas vão se sucedendo numa montagem que tampouco se pretende muito expressiva. Predomina a repetição exaustiva de ações porque assim é a rotina daqueles animais naquela fazenda.

E por mais que surjam sentimentos de piedade e indignação diante da brutalidade infligida aos bovinos, não dá para dizer que o que Cow propõe é exatamente um processo de humanização deles. Pesa aqui a ausência de uma voz over analítica, que tente antropomorfizar os animais, para forçar empatia. O humano, afinal, é no universo apresentado por Arnold o que limita a liberdade animal, explora a natureza até a última gota, tolhe os instintos mais básicos (como a amamentação da cria recém-nascida). É justamente ao desumanizar e proporcionar o contraste com o mundo humano-mecânico que o filme ganha força. Cow é, nesse sentido, o anti-Professor Polvo (2020).

Assim, se ocorre em Cow alguma aproximação entre a exploração industrial da natureza e práticas de dominação/violência entre os homens, é mais em razão de uma sensibilidade contemporânea que avança no sentido da defesa dos direitos dos animais do que de um ato estético deliberado. A filiação do filme ao cinema direto permanece insuspeita até o fim. Arnold se mostra atenta, simultaneamente, ao momento de realização de sua obra e ao rigor formal. Com isso, consegue extrapolar o simbolismo tão arraigado na história de um tipo específico de imagem e tornar o calvário de uma vaca diante da câmera lamentável e doloroso por si mesmo.

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