Elis

Elis

Gustavo Pereira - 8 de novembro de 2016

Existem formas e formas de se contar histórias. Quando o tema é cinebiografia musical, meu ponto de referência é Velvet Goldmine, filme surpreendentemente obscuro de Todd Haynes estrelado por Jonathan Rhys Meyers, Ewan McGregor e Christian Bale, que mostra um jornalista investigando e descobrindo segredos sobre a vida e a obra de Brian Slade, cantor de Glam Rock claramente inspirado em David Bowie. Os filmes não precisam ser todos assim (e até é bom que não sejam), mas a inventividade do roteiro é admirável e deveria, esta sim, ser almejada por todos os realizadores de Cinema.

Elis é uma cinebiografia bem amarrada à fórmula clássica do Cinema Brasileiro de retratar seus grandes ídolos: transformá-los em pessoas completamente alheias às banalidades mundanas, concedendo-os um ar quase etéreo, aliado a um senso de obstinação e autossuficiência que não deixam dúvidas de que aquela pessoa estava “fadada ao sucesso”. Reflexo da cultura brasileira, que considera críticas como ofensas pessoais que precisam ser ocultadas do “registro histórico” de pessoas notáveis. Somos Tão Jovens, Cazuza – O Tem Não Para e mesmo o bom 2 Filhos de Francisco esbarram nessa incapacidade dos nossos cineastas de trazer para o público um filme que mostre mais do que uma bela história de superação e sucesso baseada no esforço e na fé.

O recorte temporal escolhido cobre pouco menos de 18 anos na vida de Elis (de 1 de abril de 1964, quando ela chega com seu pai Romeu ao Rio de Janeiro até 19 de janeiro de 1982, data de sua morte em casa, na cidade de São Paulo), absolutamente nada antes ou depois desse período é mencionado. Para fãs mais inteirados da vida de Elis, a esperança de vê-la cantar no Clube do Guri da Rádio Farroupilha, a primeira viagem ao Rio, em 1961, ou mesmo os anos em Porto Alegre não prospera. Apesar da minha decepção, entendo que a proposta não é falar da vida da cantora, mas de sua carreira. Escolhas precisam ser feitas e o filme é honesto com as suas.

Tiago Feliciano ganhou o Kikito de Melhor Montagem pelo seu trabalho, mas curiosamente achei a montagem o grande problema deste filme: existe claramente uma intenção de decupar a vida de Elis em fases, como num jogo de videogame, onde cada desafio é superado e deixado de lado em sequência, da mesma forma que precisamos vencer o chefe da fase para seguirmos em frente. Elis precisa vencer sozinha, então se livra do pai; Elis precisa de um parceiro que a desafie, então supera a inimizade com um Ronaldo Bôscoli excessivamente caricato e se apaixona por ele; Elis enfrenta a Ditadura e sofre represália, mas depois de se apresentar contra a sua vontade num evento militar, a Ditadura a deixa em paz; cantar para a Ditadura causa um conflito com a esquerda materializada no chargista Henfil e isso é superado com a sua versão de O Bêbado e o Equilibrista, mas a Ditadura a deixa em paz, porque ela já foi “superada” no evento anterior. Os problemas vão e não voltam, como se Elis os enfrentasse em separado.

No momento em que o filme decide se restringir à carreira de Elis, era de se esperar que fosse rica em detalhes. Rita Lee, que lhe deu o apelido de “Eliscóptero”, é omitida: figuras importantíssimas como Lennie Dale funcionam como plot devices para construir a personagem principal, ficando em segundo plano. Tom Jobim, com quem ela gravou o fantástico Elis & Tom em 1974, vai bem, obrigado. A Ditadura, contra a qual Elis encampou uma oposição ferrenha, é tratada en passant.

Mesmo assim, o diretor Hugo Prata consegue criar beleza em boa parte do longa: o uso acertado de enquadramentos dimensiona o tamanho da protagonista e insere o espectador no Brasil da MPB. Quando Elis é reprovada na audição para Pobre Menina Rica, corre para a praia aos prantos e fica pequena no plano aberto, dimensionando como ela própria se sente naquele momento. Quando ela conhece César Camargo em um clube, os planos-detalhe, aliados a uma fotografia de chiaroscuro fazem o espectador parte do ambiente, como se dividisse a mesa com eles. É importante falar em separado da fotografia, um trabalho primoroso de Adrian Teijido, com recorrentes tons sutis de sépia para dar ao longa um ar documental.

A protagonista Andréia Horta dá vida a uma Elis correta, apesar de alguns maneirismos exagerados. Caco Ciocler faz o mesmo papel desde que eu o assisti pela primeira vez numa novela, mas calha de combinar com César. Lúcio Mauro Filho, assim como Pedro Cardoso, nunca conseguirá fugir do “estigma Grande Família”, mas consegue ser melhor do que Gustavo Machado, em grande parte prejudicado pelo roteiro que lhe deu falas caricatas. Zé Carlos Machado, ator brilhante, é subaproveitado e sai de cena com menos de meia hora de filme. Mesmo problema de Julio Andrade, sem tempo de tela para desenvolver seu Lennie.

Enquanto entretenimento, Elis é um filme recomendável, principalmente por evocar o riso em alguns diálogos intencionalmente engraçados. Segue uma estrutura coesa e vai até o fim sem grandes sustos. As cenas musicais são particularmente emocionantes, com destaque para Como Nossos Pais, Fascinação e O Bêbado e o Equilibrista. Enquanto registro histórico de uma das maiores cantoras da história deste país, fica devendo por não trazer nada de novo. Poderia ser inesquecível, mas é apenas bom.

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