Escravos de Jó

Escravos de Jó

Ódio, mito e a herança deixada pelas gerações passadas

Matheus Fiore - 25 de janeiro de 2020

Como diz o ditado: “de boas intenções, o inferno está cheio”. “Escravos de Jó”, filme de Rosemberg Cariry que abriu a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, é, infelizmente, um exemplo do ditado. A obra se passa em Ouro Preto, e acompanha o surgimento do amor entre dois universitários, uma refugiada palestina e um judeu de família francesa e defensora de Israel. Fica claro, portanto, que Cariry quer falar sobre os preconceitos de hoje, mesmo que, para isso, utilize os de ontem em sua narrativa, permitindo que a obra projete a herança deixada pelas gerações anteriores.

Cariry utiliza o relacionamento como ponte para abordar diversos temas – o que se torna a maldição do filme, mas essa parte comentarei com mais detalhes à frente –, desde mitos fundadores da sociedade brasileira, até mesmo mitos gregos como o de Édipo e a relação entre preconceitos e xenofobia na humanidade. “Escravos de Jó” cria um panorama no qual todos os mitos parecem estar entrelaçados, sugerindo uma atemporalidade e repetição de acontecimentos ao longo da história e, com isso, mostra como o passado, muitas vezes, predetermina os relacionamentos de hoje

Essa narrativa, em alguns momentos, funciona por motivos específicos e isolados. A trilha, por exemplo, vez ou outra emula uma estética à la Vangelis, com sintetizadores. Além disso, o fato de o filme ser filmado digitalmente e ter sua trama inteira ambientada em uma cidade histórica do Brasil cria esse contraste entre o passado e o futuro, que acaba não sendo aproveitado e muito menos desenvolvido. Uma ideia parecida foi muito bem executada por Christian Petzold em “Em Trânsito”. O que sobra na obra de Petzold e inexiste na de Cariry é o foco. Cariry aponta para tantos caminhos que não consegue desenvolver uma narrativa sobre praticamente nenhum dos assuntos, fazendo com que “Escravos de Jó” pareça um carrossel involuntário de exibição de mitos históricos.

A miscigenação, por exemplo, é vista por muitos como o mito fundador da sociedade brasileira, mito este que é, historicamente, contrastado com a maior sina de nossa trajetória: o racismo. Assim como as referências a Édipo, ao barroco ou ao conflito entre Palestina e Israel, porém, o estudo da fundação mitológica da sociedade brasileira acaba sendo um assunto sugerido aqui e ali, mas nunca desenvolvido (nem textualmente, nem visualmente). “Jó” parece perdido quanto ao que quer ser, e acaba, para evitar a confusão do público, aderindo a um dos recursos mais pobres que um filme pode utilizar: a superexplicação.

Há incontáveis cenas nas quais um personagem mais velho explica basicamente tudo que precisamos saber para um personagem mais novo. Ao ponto de, em dado momento, assistirmos, literalmente, a uma aula sobre a história transbarroca. Apesar de ter um ótimo diretor de fotografia ao seu lado, Petrus Cariry, Rosemberg acaba não valorizando estas imagens, descartando qualquer sutileza em prol de um didatismo que faz “Escravos de Jó” ser uma obra até infantilizada pela forma como descrê na inteligência de seu público. Não basta, por exemplo, o protagonista colocar imagens de vítimas de diferentes crimes lado a lado, é preciso gritar, a plenos pulmões, que todos são igualmente subjugados. Essa obviedade, além de simplista, jamais aprofunda os temas, os mantendo sempre na superfície.

Se pelo menos as explicações desenvolvessem a narrativa ou aprofundassem os estudos de Rosemberg, “Escravos de Jó” poderia ser beneficiado por isso. O que acontece, porém, é que o filme martela as mesmas ideias sem nunca as aprofundar ou amarrar em uma ideia primordial. Formalmente, “Escravos de Jó”, às vezes, parece um conjunto de episódios isolados de uma série, não conseguindo criar uma unidade e muito menos articular essas ideias propostas.

O pior é que, no meio da desorganização que há na obra, há momentos que, isoladamente, funcionam e reiteram a força mitológica por trás das pretensões de Cariry. A presença de figuras do folclore e da cultura brasileira agregam à sensação de que o Brasil vive e repete seus mitos constantemente. O problema é que, quando “Escravos de Jó” encontra o caminho para explorar tais mitos, o filme sucumbe diante de uma condução dramática muito mais interessada em reviravoltas do que em imagens que construam uma unidade cinematográfica. Ao fim, ideias da fotografia e da trilha sonora isoladamente não são capazes de salvar “Escravos de Jó” de parecer um mero esboço, que exige um maior esculpimento estético.

Assim como os personagens parecem fadados a repetir ou enfrentar os mitos que norteiam a fundação das civilizações, o longa-metragem parece fadado a sabotar suas próprias ideias ao longo de 96 minutos. Se a sina da sociedade é ressignificar e “modernizar” seus preconceitos, fazendo com que o ódio seja perpetuando pelas novas gerações, a sina do longa de Rosemberg Cariry parece ser não conseguir jamais propor qualquer estudo para a origem e a causa da manutenção desses preconceitos. Em “Escravos de Jó”, retratar a xenofobia com imigrantes palestinos e mostrar o quão ruim é a situação da Palestina – e com um olhar extremamente superficial e escolar, vale ressaltar – parece ser o suficiente para os realizadores. Infelizmente, não é, e tudo que “Escravos de Jó” consegue ser é conteudísticamente e formalmente difuso.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

Topo ▲