Her Socialist Smile

Her Socialist Smile

Fragmentos de passado

Nicholas Correa - 22 de janeiro de 2021

É uma constatação infeliz que a figura de Helen Keller na cultura ocidental seja mais reconhecida pelo que ela representa em termos de superação pessoal (uma garota surda e cega de nascença que aprendeu a se comunicar com o resto do mundo graças aos esforços de Anne Sullivan, sua professora) enquanto seu engajamento político mais radical seja trazido à tona com menos frequência. Esse conflito quanto à figura pública de Keller chega a ser abordado em Her Socialist Smile pelo descontentamento da mesma em ser vista pela opinião pública como uma figura manipulada, tendo sua nobreza reconhecida apenas na causa dos surdos e cegos. Mas é importante notar que essa ironia nos chega pelas próprias palavras de Keller, seus escritos dispostos em um fundo preto. Toma-se um distanciamento dos procedimentos de praxe do meio cultural que delimitou os interesses potenciais em Helen Keller. É preciso situar sua fala, apresentá-la diretamente da fonte escrita.

Para os realizadores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, retornar pura e simplesmente a um passado narrativo era inconcebível, a consciência histórica do cinema do casal implicava antes de tudo lançar uma perspectiva do passado sob a luz do inevitável presente. Ao falar do cinema do casal, o crítico Serge Daney aponta que o seu modelo pedagógico consistia em uma “recusa obstinada a todas as forças de homogeneização”, era um cinema que construía uma pedagogia com base na heterogeneidade, na fissão, na divisão. À eles interessava não somente encenar os discursos das figuras históricas e míticas que representavam, mas principalmente despir o aparelho do discurso (as vozes, a encenação, o dar a ver das imagens) de suas capacidades persuasivas, deixá-lo nu. John Gianvito, ao realizar um filme historicista, segue por caminhos similares, por um desmembramento do discurso. Começamos o filme com um fundo preto, escutamos Helen Keller, surda-cega, pronunciando algumas palavras à sua maneira peculiar. Em seguida Anne Sullivan repete as frases de Keller de um modo mais claro e surgem sobre o fundo preto da imagem a transposição das frases em braile.

É a exposição dos meios que concedem o discurso que guia o processo ensaístico do filme de Gianvito, uma reconstituição histórica precisa e honesta não abre espaço para o que é conveniente. A voz consciente do ensaio, Carolyn Forché, é vista chegando no estúdio de gravação, entrando na câmara acústica e sentando-se em frente ao microfone com o texto da narração em mãos; para mostrar uma entrevista de Keller reconhece-se que ela precisa ser acessada diretamente por sua transcrição (seus restos) e que seu referente visual possível é o palco em que ela se deu como ele se encontra hoje. Estabelece-se uma dialética do passado e presente, uma consciência histórica, toma-se o presente como a única instância possível do olhar, da avaliação e do pensamento. Quando se revela o fato de que boa parte da memorabilia de Keller foi perdida com a destruição dos escritórios da Helen Keller Worldwide nos ataques ao World Trade Center, reitera-se o que há de disjuntado, fragmentado e difícil no ato de olhar para o passado.

Não é possível estar junto de um sujeito que não existe mais, se há uma partilha quanto ao que o filme tem de político ela se dá pelas coisas que restam de Keller e pelas coisas que a contextualizam no mundo hoje. O presente como ele se encontra é a instância que confere todo e qualquer significado possível. Um dos poucos momentos que o filme assume frontalmente o seu engajamento com a causa de seu sujeito é também um dos poucos em que vemos registros fílmicos de Keller, um registro mudo da ativista datilografando em braile ao lado de Sullivan. Suas citações em escrito que intercalam as imagens de arquivo ganham uma fonte vermelha. Mas é através do som que surge um choque, com ele insere-se neste instante do filme uma faixa de punk rock como um acompanhamento musical.  O elemento possível de ser encenado torna-se o encarregado de promover o atrito. São imagens de dessatisfação acompanhadas com música de dessatisfação e mesmo assim os elementos se esbarram, permanecem heterogêneos com o anacronismo. 

Não é algo inesperado, para se realizar um cinema dialético implica-se atrito, colisões. Conforme a investigação de Gianvito sobre a vida política de Keller e seu engajamento com a causa socialista e operária se encaminha, mais as falas de sua figura ganham contrapontos. Em certo momento vemos um excerto de uma conferência de Noam Chomsky no qual ele aborda o fenômeno do leninismo no contexto da Revolução de Outubro. O excerto é seguido por uma transcrição do relato de um Bertrand Russell desacreditado na ocasião em que o mesmo visitou a União Soviética em 1920. Mesmo que Gianvito esteja em seu viés ao lado de Keller, ele parece reconhecer que ele não pode encará-la sem antes dimensioná-la com o restante das coisas do mundo, mais uma vez, sem enraizá-la e situá-la. A exegese crítica possível em Her Socialist Smile nasce do esforço de Gianvito em promover esses embates conforme novas vozes são adicionadas ao corpo do filme.

Mas é ao distanciarmos um pouco do campo dos discursos e dos arquivos que esse esforço de cisão e confronto de John Gianvito assume uma forma emblemática, é ao olharmos para as coisas que são de fato gravadas e registradas por ele. Enquanto o som ocupa-se com a narração histórica, a voz ensaística consciente, a imagem frequentemente vai para um outro lugar, ela se ocupa com os ambientes que eram familiares a Keller. A velha casa, o rio, a neve, a grama, etc. Todas as coisas são vistas sob um ponto de vista que parece evocar uma tactilidade (Keller não teria como dimensionar a extensão do mundo se não fosse pelo tato). A extensão de uma paisagem é obliterada de modo que só percebemos aquilo que está ao alcance do corpo e de seus membros. Porém isso soa quase contra intuitivo, não só Her Socialist Smile não é um filme de alusões sensitivas fáceis como também seria um enorme contra senso construir uma sensibilidade audiovisual para experiências que não eram auditivas ou visuais. O que poderia nos levar à conclusão de que essas imagens gravadas pela câmera de Gianvito não são simplesmente a tentativa de expressão de algo inefável, mas sim o “negativo” das experiências de Keller, o contracampo de suas sensações dentro de um esquema representativo.

Ao assumir o presente como o território possível para as sensações, temos a oportunidade de nutrir um sentimento por um determinado momento na história e ao mesmo tempo escapar de seu potencial sedutor e galvanizante. Keller em certo momento no filme escreve sobre os sentimentos conflitantes que ela tem com sua terra natal, o estado confederado do Alabama que, mesmo após a guerra civil americana e a abolição da escravatura, ainda carregaria um espírito reacionário e preconceituoso pelos anos seguintes. Disso surge uma imagem chave quanto à ética de Gianvito em Her Socialist Smile, tão assombrada e política quanto as paisagens de Cedo Demais/Tarde Demais de Straub e Huillet: quando filma-se os campos de algodão ao lado da casa de infância de Keller. O algodão se desprende graciosamente das flores com o vento, não há indício de qualquer presença humana e muito menos de escravos. O que se conquistou ao levar adiante um sentimento de dessatisfação no passado é sentido no estado das coisas hoje, o presente é o dado histórico mais óbvio e também o território da mudança.

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