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Legalidade

Legalidade

A história como melodrama ruim

Wallace Andrioli - 26 de setembro de 2019

Filmes como “Legalidade” deveriam ser realizados com maior frequência no Brasil. Ainda que esse, em específico, tenha sido feito de forma bastante equivocada. Há diversos episódios na história política brasileira dos séculos XX e XXI que oferecem substrato dramático para o cinema, mas que são, via de regra, ignorados por produtores, roteiristas e diretores. A explicação mais provável passa pelos custos de realização de filmes de época, mas não há necessidade de se recorrer à dimensão épica: o apelo aqui é por thrillers políticos com recortes cronológicos restritos, distantes das cinebiografias laudatórias no estilo Sergio Rezende, por exemplo. Algo como o que fez João Jardim, com êxito moderado, em “Getúlio” (2014), que evita tentar dar conta de toda a trajetória de Getúlio Vargas para se dedicar somente aos seus últimos dias de vida, encastelado no Palácio do Catete enquanto seu governo e legitimidade são corroídos por uma crise de enormes proporções.

“Legalidade”, de Zeca Brito, tenta seguir caminho semelhante, ao tratar da Campanha da Legalidade, organizada pelo governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola (interpretado com bastante competência por Leonardo Machado), em 1961, para garantir a posse de seu cunhado João Goulart na Presidência da República. Os momentos protagonizados por Brizola e que tentam emular a tensão que cercava o Palácio Piratini, em Porto Alegre, ameaçado de bombardeio pelos ministros militares, são relativamente eficazes. Mesmo que Brito aposte num retrato excessivamente mitificado do então governador. Trata-se, sem nenhuma dúvida, de uma das maiores lideranças políticas da história do Brasil, talvez do melhor presidente que o país nunca teve, mas falta nuance ao Brizola de “Legalidade”. No filme, não há nenhuma fissura nesse homem que consegue ser, ao mesmo tempo, líder nacionalista inspirador, amigo confiável e pai e marido carinhoso.

Mas os maiores problemas de “Legalidade” não estão exatamente no que acontece no Palácio Piratini. Brito cria dois outros eixos narrativos que diluem bastante a força de seu filme enquanto thriller político. O primeiro é um triângulo amoroso envolvendo dois jornalistas (Cleo Pires e José Henrique Ligabue) e um antropólogo (Fernando Alves Pinto), responsável por construir um olhar para a história atravessado pelo melodrama ruim. É uma lógica típica de produções históricas televisivas, em que a política não parece forte o suficiente para gerar boa dramaturgia. Esse núcleo, que é provavelmente o que ocupa mais tempo de “Legalidade”, ainda tem algumas cenas bem constrangedoras, como as que trazem Luís Carlos (Pinto) numa aldeia indígena e, principalmente, aquela em que esse último e Cecília (Pires) fazem sexo em meio às barricadas montadas para resistir aos ataques militares de Brasília.

A terceira frente aberta por Brito é ainda mais problemática, por sua insipidez. Nela, Blanca (Letícia Sabatella), filha de Luís Carlos e Cecília, pesquisa num arquivo sobre o passado da mãe. São cenas curtas, que servem para introduzir breves referências à violência da ditadura militar e à importância de se olhar frontalmente para a história do país. Esquemáticas e dramaticamente deslocadas do restante da narrativa, no entanto, elas acabam ressaltando a falta de foco do diretor e roteirista, uma vontade de dar conta de muita coisa que resulta em pouca qualidade de fato.

A grande dificuldade de Brito, no fim das contas, é modular o tempo de “Legalidade”, lidar com a espera, encontrar substância na aparente falta de material fático. Essa é uma história de ameaças que não se concretizam e de prenúncios do que aconteceria alguns anos depois (a derrubada de Goulart e a instalação de uma ditadura militar). Brito, no entanto, não resiste à tentação de preencher com eventos artificialmente construídos o que vê como vazios, drenando parte considerável da força política de seu filme, de sua capacidade de pensar criticamente o passado recente do Brasil.

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