Santo Forte (1999)

Santo Forte (1999)

A fé e o povo brasileiro

Matheus Fiore - 9 de dezembro de 2020

Diferente de países como os Estados Unidos, que foram fundados essencialmente em cima de ideais religiosos – no caso o Destino Manifesto, a ideia de que o homem branco de sangue europeu estava destinado a conquistar aquelas terras por ser o escolhido de Deus –, o Brasil não foi fundado essencialmente em cima da fé, mas ela permeia nosso imaginário e toda nossa formação cultural. Nosso país teve como alicerce de sua fundação a miscigenação. Mas com a miscigenação, claro, houve o encontro de culturas, ritos e crenças.

O que Eduardo Coutinho busca com Santo Forte (1999) é estudar essa mistura cultural justamente pelo recorte da fé, mostrando como todos os temas políticos e sociais que historicamente habitam a cultura popular e o debate público inevitavelmente passam, uma hora ou outra, pela espiritualidade de nosso povo. Santo Forte se estrutura sob diversos depoimentos de brasileiros comuns que contam sobre sua relação com a fé. Da atéia ao cristão, passando por adeptos de variadas religiões de matriz africana. Coutinho sempre abre suas conversas perguntando sobre a rotina religiosa, o papel da fé na vida de cada um dos entrevistados, mas essas conversas sempre acabam se expandindo para assuntos muito mais abrangentes e mundanos.

Coutinho foi um documentarista muito único, e conseguia com perguntas simples extrair o máximo de seus entrevistados. Nunca tarda para que um relato sobre uma ida ao terreiro termine falando sobre problemas familiares ou sociais. Mais do que uma obra capaz de penetrar no imaginário e na alma brasileira usando a fé como porta de entrada, Santo Forte é um filme que mostra como tudo está essencialmente ligado e em constante mudança. A crença e a vida se retroalimentam e se transformam juntos. 

Assim como a miscigenação é o alicerce mitológico da sociedade brasileira, o encontro de diferentes dogmas e mitos resulta em novas religiões, novas formas de fé e adoração, algo bem pontuado no filme por, por exemplo, os relatos de pessoas que possuem suas espiritualidades resultantes da mistura de diversos ideais religiosos de diferentes origens. O filme é, em última análise, um recorte de nossa diversidade e riqueza culturais.

Coutinho também se interessa pela forma como a religião se espalha pela cultura popular. Quando o diretor entra na casa de uma das entrevistadas, a câmera começa filmando a televisão, presa por um suporte no alto da parede, até que lentamente se desloca até encontrar uma mulher cantando para Jesus na cama. Coutinho mostra, assim, duas coisas: a primeira é como a mídia tem uma participação ativa na formação religiosa do povo; a segunda – e para mim, mais interessante –, é como todos esses elementos, hábitos e costumes possuem na fé uma intersecção. O dogma é o ponto de encontro de tudo que molda o caráter de nosso povo. Uma característica que pode passar despercebida, mas que é essencial para a obra é o fato de Coutinho nunca adentrar templos ou casas religiosas. As conversas acontecem nas ruas ou nos lares das pessoas. É um diálogo sobre a fé que parte do ambiente mais pessoal dos personagens, e mostra bem como essa espiritualidade típica do brasileiro vai além das ligações com figuras religiosas; é uma questão quase mitológica, de ancestralidade e costumes, de formação de caráter. 

A montagem não por acaso vez ou outra faz com que nos afastemos momentaneamente dos rostos e investigue o espaço a procura de símbolos religiosos. Símbolos esses que aparecem nas mais variadas formas e podem ou não ser tema das falas dos entrevistados. São ícones que já foram motivo de discussão em algumas das histórias contadas, mas que também podem ocupar o ambiente de forma silenciosa, como parte da personalidade de quem ali vive. São a materialização de um credo e de um sentimento em um totem físico. 

Coutinho consegue explorar toda a diversidade religiosa de um povo tão plural quanto o nosso sem nunca arrancar palavras, apenas abrir caminho para que elas saiam naturalmente da boca de seus personagens. Santo Forte é mais do que um registro da pluralidade cultural de nosso país, é também a constatação de que a fé permeia cada nível da existência da nossa sociedade. É uma obra que revela o quanto a religião vai além da ligação entre o divino e o mundano, e faz parte de nossa formação identitária, da construção do rosto de um país. Santo Forte mostra como, crendo ou não, é impossível fugir da presença da espiritualidade de nossa sociedade, já que ela não existe em um vácuo e está sempre integrada a todas as nossas questões amorosas, familiares, sociais, políticas e o que mais você quiser.

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