Medida Provisória

Medida Provisória

Distopia brasileira racial repleta de contradições e perdida na estética de grande estúdio

Michel Gutwilen - 18 de março de 2021

Falar de Medida Provisória se mostra um exercício cheio de armadilhas, pois as chances são grandes de se deixar influenciar por informações extra fílmicas. O que se quer dizer com isso é que, seu diretor, Lázaro Ramos, é inegavelmente um dos maiores expoentes e símbolos do povo negro brasileiro, não só por seu sucesso pessoal como ator, mas também por se associar a diversos projetos voltados para a causa racial. Dito isso, para o livre exercício da atividade crítica, é preciso, momentaneamente, “jogar fora” essas informações e julgar o filme pelo que ele apresenta enquanto obra de arte por si só, ainda que ela pareça conflitar com a trajetória de Lázaro até aqui, o que mostra como o Cinema é uma espécie de arte complexa e também um meio de Comunicação que muitas vezes pode ser falho, sobretudo no que tange ao direcionamento de um “público alvo”.  

Medida Provisória pode ser resumido por uma de suas sequências, que é extremamente ambígua e que, de minha parte, considero bastante infeliz. Porém, antes de chegar a ela, uma rápida contextualização da história: o cenário é uma distopia futurista em que o governo edita uma medida provisória ordenando que os brasileiros de “melanina acentuada” (novo nome para negros) sejam mandados de volta para África. Com isso, as ruas se tornam um cenário de guerra racial e muitos dos “melaninados” passam a se reunir em “afrobunkers” (novo nome para quilombolas). Voltando a afirmação inicial, há uma montagem paralela, lá para o final do filme, quando as tensões raciais atingem o auge, que alterna duas cenas. Em uma delas, um personagem negro é morto pela polícia (instrumento do governo branco), na rua. Na outra, um personagem branco é morto por um grupo de negros, dentro de um afrobunker. Enquanto tudo isso acontece, há uma narração em off promovendo um discurso de que as pessoas se perderam e são todas uma só, “com suas peles virando espelhos”. 

Partindo do pressuposto que a verdadeira moral de um filme não está em sua história, mas em sua mise-en-scéne — no modo como o diretor utiliza a linguagem cinematográfica — o que é possível pensar da associação gerada por esse tipo montagem e a narração em off? Ao botar as situações lado a lado, falando que todos são “espelhos uns dos outros”, a reação do oprimido é reduzida ao mesmo patamar da violência do opressor, como se ambos estivessem errados no mesmo nível em seu emprego da violência, o que me parece bastante reducionista e  ingênuo. Essa emblemática sequência parece ir na direção contrária do que se espera de uma narrativa sobre racismo, o que poderia indicar que a intenção original não era essa, com possibilidade de ter acontecido grande falha de comunicação. Entretanto, outros elementos fílmicos levam a crer que existe, de fato, um direcionamento para tal visão. 

Ao se isolar o contexto da cena em que o homem branco é morto, suas nuances ficam ainda mais estranhas. Trata-se de um personagem LGBTQIA+, namorado de um residente do afrobunker, que é acusado de ser um espião do governo, erroneamente, pelos outros moradores, o que gera seu assassinato. Aqui, cabe realçar que ele é personagem secundário, que ganha destaque no meio da narrativa, momentos antes de sua morte, sem complexidade alguma. Ou seja, ele nada mais é do um dispositivo do roteiro, sendo criado apenas para servir um propósito específico nesta situação chave. Pergunta-se: O que se quer dizer com essa cena e como ela contribui ao debate sobre racismo aqui proposto? Repito, não há como saber as intenções originais dos realizadores, mas o que leio dessa cena é que se quis dizer que a própria resistência negra teria se perdido no meio do caminho, cegando-se no meio do ciclo de violência e também cometendo injustiças contra uma outra minoria. Não se nega aqui que isso não exista na realidade, mas a inserção deste momento não acrescenta nenhuma complexidade a discussão sobre preconceitos, visto que a história nunca discute as consequências desse ato, somente enfraquecendo a temática de racismo. Essa cena é o argumento perfeito para a classe média que irá assistir ao filme apontar que os negros também possuem uma parcela de culpa na situação. Novamente, mais um discurso recheado de ambiguidade: falha de comunicação ou intencional?

Apontado tudo isso, torna-se difícil não crer que a moral principal de Medida Provisória é uma ideia de resistência pacifista, que enxerga o problema maior no ciclo de violência da guerra racial, igualando os dois lados através de malabarismos narrativos, que estão tanto a nível de mise-en-scène (a montagem paralela), quanto de roteiro (o discurso da narração em off e a criação do personagem LGBTQIA+ só para ser morto). Inclusive, essa postura ‘anti-violência’ é a posição do protagonista, vivido por Alfred Enoch, um advogado pacifista que se recusa (e condena) reagir violentamente a opressão do governo branco, por achar que, se o oprimido usar sua força física, estaria se rebaixando ao mesmo nível do outro lado. Chega a ser cômica a sequência em que ele se depara diante de um confronto real, mas foge, e logo depois aparece fazendo uma publicação no Facebook.

A esta altura, alguém poderia argumentar que são diversos os filmes em que o protagonista possui um comportamento ou uma ideologia em específico e não necessariamente o diretor endossa ela, mas, pelo contrário, até faz uma crítica ou uma subversão da mesma. Contudo, por tudo que Medida Provisória apresenta, não parece ser esse o caso. Ou pior, em uma das cenas finais, quando o protagonista dá um soquinho na cara do chefe do governo, parece ser essa a “grande” solução do roteiro para mostrar que o oprimido sabe reagir, em um anti-clímax  desestimulante. De certo, se passa longe de uma catarse que os filmes raciais de diretores como Spike Lee, ou até o expoente do cinema brasileiro, Déo Cardoso (Cabeça de Nêgo), atingem. Se as obras desses cineastas conseguem, em seu clímax, transpor a revolta e o sentimento revolucionário dos seus protagonistas para a audiência, rompendo a barreira da tela do cinema, o que há em Medida Provisória é apenas um prêmio de consolação ou uma piada de péssimo gosto.

Neste sentido, um grande problema estrutural de Medida Provisória, relacionado com todos os outros que já foram citados, é o fato de que são muito evidentes os cacoetes de uma produção “Globo Filmes”. Ele se insere muito mais na lógica de filme padronizado e inofensivo de um grande estúdio do que pensado em um sentido autoral. A corda bamba do seu tom, que pende ora para o drama racial, ora para a comédia satírica, em nada favorece o projeto. Não se quer dizer aqui que não há como fazer histórias sobre problemas sociais revestidos do gênero da comédia, o problema é gastar boa parte do tempo tratando as situações com leveza e piada, para depois esperar que o público irá se emocionar ou se chocar quando a narrativa tenta subir um tom dramático, se levando mais a sério. Medida Provisória existe num limbo entre a sátira escrachada e o drama. Além disso, o problema não é só de tom, mas de direção também (com todo estima e respeito à carreira que Lázaro construiu como ator), pois as próprias cenas de opressão na rua, em que a polícia está agredindo a população negra, parecem seguir uma estética limpa de um videoclipe estilizado, com utilização repetitiva de câmera lenta, o que deixa tudo muito afastado da sujeira crua do mundo real, mas que condiz com sua inserção de forma suave dentro de um produto comercial. 

No geral, pode-se dizer que toda a mise-en-scène é bastante funcional, sem a menor tentativa de criar alguma nuance ou subtexto com a decupagem e movimentos de câmera, até com alguns exemplos em que as escolhas soam aleatórias, como na sequência em que Taís Araújo e Alfred Enoch estão dançando no apartamento e há uma alternância de extremos close-ups na personagem com planos mais abertos dos dois dançando. Se o objetivo era trazer sensualidade, passou longe. Inclusive, isso também é algo que está distante de modo geral, pois nunca se ultrapassa a troca de selinhos entre o casal de protagonistas. Há até uma gravidez no meio de Medida Provisória, mas não há o menor indício que o casal se relaciona sexualmente.  Mais uma vez, a estética family friendly de um produto “Globo Filmes” ataca. Se a química do casal não se faz sentida, fica difícil com que o público se importe com a separação deles ou se emocione com seu reencontro. 

No fim, tudo o que foi dito parece consequência de Medida Provisória ser uma produção de grande estúdio, que têm como audiência um público médio (e de classe média). E quem são essas pessoas? São aqueles que querem sentar na poltrona para assistir a um “cinema político” e fazer comentários com a pessoa ao lado que indiquem sua “conscientização”. Por isso, se recorre às metáforas mais fáceis possíveis, como as sacadinhas do café com leite e a do sorvete de chocolate. Ao mesmo tempo, o filme não pode ser tão radical, pois não agradaria esse espectador, que achará o soquinho dado de bom tamanho, além de que pensará ser coerente a cena que mostra a resistência negra tendo um “defeito” e matando o homem errado.

No mesmo sentido, até a lógica de escalação do elenco parece favorecer esse público alvo, só contendo rostos negros conhecidos mundialmente (Taís Araújo, Alfred Enoch, Emicida, Seu Jorge). Isso constantemente ativará no espectador a consciência de que aquela história não se passa de um filme, longe da realidade, aumentando sua sensação de segurança. Não há aqui um rosto desconhecido para que o jovem negro se espelhe. De mesmo modo, esse cidadão também quer dar algumas risadas, afinal, o Cinema também é entretenimento, não podendo ser algo “chato” e nem tratado de forma tão pesada, precisando de um “quebra-gelo”. Com isso, o papel de “olha como esse racista é engraçadinho e bobinho” cabe a Renata Sorrah e Adriana Esteves. Assim, quando a sessão acabar, não haverá revolução interna nenhuma naquele espectador, tudo foi feito para que ele siga normalmente sua vida. Ao sair da sala de cinema, ele apenas fará um rápido comentário de que “racismo é muito ruim” e que “o Brasil ainda está muito distante desse cenário”, apenas para perguntar em seguida que lanche eles irão comer no restaurante abaixo do cinema, que se localiza dentro de um shopping.


Este texto faz parte da nossa cobertura para a edição de 2021 do SXSW.
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