Narciso em Férias

Narciso em Férias

Entre a força do relato e o controle excessivo

Wallace Andrioli - 14 de setembro de 2020

No universo relativamente amplo dos documentários musicais biográficos brasileiros, Narciso em Férias é um leve sopro de vitalidade. Isso porque os diretores Renato Terra e Ricardo Calil, tomando por base um momento específico do livro Verdade Tropical, entrevistam Caetano Veloso exclusivamente sobre o conteúdo desse trecho. O material factual aqui é muito forte, já que se trata do relato de Caetano sobre sua prisão em 1968, e Terra e Calil têm o mérito de reconhecer isso e arranjar todo o filme em torno do rememorar de um episódio traumático.

Narciso em Férias se passa inteiro num único ambiente, um espaço vazio e amplo no qual Caetano surge sentado, falando. Não há imagens ilustrativas das palavras do entrevistado e o efeito produzido por essa escolha é condizente com o que é narrado. Caetano fala da cadeia, do medo de morrer, do acesso restrito a pessoas e coisas, e a câmera permanece sempre nele, nunca recorrendo, justamente, a outras pessoas e coisas que complementem o que está sendo dito. Precisão no recorte e rigor na construção narrativa são méritos visíveis do filme.

Por outro lado, vez ou outra os diretores buscam algum tipo de expressividade com a câmera que soa desinteressante, óbvio. Ao, por exemplo, enquadrar o entrevistado como uma figura diminuta naquele espaço, quando ele cita a vastidão de uma sala para onde foi levado pelos militares, Terra e Calil buscam ilustrar as palavras com a câmera. O mesmo vale para os momentos em que Caetano aparece na parte inferior do quadro, como que pressionado pelo vazio sobre sua cabeça. São escolhas que tentam romper com uma eventual monotonia do relato puro, mas que revelam algum grau de descrença na força das palavras de seu personagem.

Ao mesmo tempo, Narciso em Férias tem uma relação de adesão total ao que é dito por Caetano, o que também é um problema. Não que precisasse manifestar algum tipo de desconfiança quanto à veracidade da história contada, mas essa é uma narrativa já previamente articulada em livro, tornada, portanto, parte da biografia oficial do cantor e compositor. Há um momento em que o filme consegue abrir uma brecha, quando Caetano é confrontado com a mesma fotografia na mesma revista que vira na prisão. Os olhos marejam pela primeira e única vez, a voz embarga, e ele pede para interromper a conversa. Terra e Calil atendem e cortam para Caetano cantando “Hey Jude”, anteriormente referida como uma canção que lhe trazia esperança de libertação do cárcere. Ou seja, mesmo que esse momento mantenha uma carga emotiva, Narciso em Férias acaba subaproveitando seu potencial de abertura de um discurso fechado. Os diretores optam aqui por restabelecer uma atmosfera de conforto para o entrevistado, que perdura até o final. A cena é bonita, mas fraca, no sentido da ausência de produção de uma relação mais imprevisível com o mundo filmado.

Eduardo Coutinho dizia gostar de criar, nos seus filmes, “prisões” (espaciais ou temporais) para si, dentro das quais era livre, receptivo às surpresas advindas do contato com a alteridade. Terra e Calil flertam com esse tipo de dispositivo, até dialogando com as situações descritas por Caetano, mas se mostram pouco afeitos à surpresa. Talvez isso seja inevitável diante de uma figura pública – não à toa, Coutinho recusava completamente esse tipo de personagem.

Ainda assim, Narciso em Férias é um filme prazeroso e doloroso de ver, que consegue equilibrar o componente patético do funcionamento burocrático da ditadura militar brasileira, produtor até de certo humor involuntário, com a dimensão trágica do episódio da prisão de Caetano e desse momento histórico como um todo. A leitura do processo para a câmera pelo próprio acusado é um artifício muito bem utilizado por Terra e Calil: dele advêm risos nervosos, já que o ridículo da linguagem esquemática e dos valores tacanhos estava na base de um poder sólido e, o que é pior, perene.

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