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Nova Ordem

Nova Ordem

Se o mundo é cruel, deve o cineasta que faz sua reprodução também ser?

Michel Gutwilen - 22 de outubro de 2020

Em todos os tipos de arte se trabalha com representações de um mundo distópico e cruel. Se a violência e a crueldade humana faz parte da história do mundo, é evidente que a arte há de retratá-los. Seria conservadorismo ser contra este tipo de conteúdo. Porém, e a forma como isso é retratado? Por exemplo, se em um roteiro há uma cena de estupro, e até então não há como saber qual a intenção desse momento, o modo como se filma ela que definirá o que se quer dizer. Pode, um cineasta, partir do seguinte argumento: “como o tema do meu filme é cruel, irei fazer escolhas formais também cruéis”, criando uma dita unidade entre forma e conteúdo? Não acho que esta última pergunta tenha uma resposta em abstrato, mas que se deve pensar caso a caso, então se faz necessário entender melhor o que é Nova Ordem e o que revela o apontar das câmeras de Michel Franco.

Na história de Nova Ordem, acompanhamos o luxuoso casamento da filha de um homem bastante rico e corrupto. No mesmo dia, uma espécie de revolta desordenada está acontecendo no México e os manifestantes conseguem entrar na mansão da família, fazendo um massacre. A noiva, que é a protagonista, não estava na festa naquele exato exato momento, pois, de bom coração, havia saído para ajudar o antigo funcionário da casa que precisava de dinheiro. Como a chacina está ocorrendo em sua casa, a protagonista não consegue voltar e precisa ser levada, no dia seguinte, por uma escolta do Exército. Porém, no meio do caminho, ela é raptada pelos próprios militares, que a levam para uma base, onde é feita prisioneira em condições desumanas, junto com outras pessoas de classe alta, para que seja pedido um resgate por ela.

A estética invertida do título do filme que aparece em seus minutos iniciais já deixa um tanto quanto óbvio que o mundo que Franco quer retratar não é nenhuma nova ordem. É um falso novo que é apenas o espelho do que era o ordenamento antigo. O caos anárquico contra a corrupção não leva a uma mudança no status quo, mas apenas novas pessoas que assumem a mesma posição social. Como um tabuleiro de xadrez, trocam-se as peças antigas por novas, mas a posição do peão e do rei continuam a mesma.

Uma das observações mais evidentes que se tira de Nova Ordem é pensar na sua representação de dinâmica de classes. Obviamente, a própria escolha do roteiro em mover a narrativa ao redor da protagonista rica movida na base do altruísmo (ou sentimento de culpa cristão) que ajuda os pobres já é um indicativo. Porém, apontar esse problema seria macular o filme ainda em sua origem, então cabe pensar na execução da mise-en-scène. Na sequência do massacre na mansão, assim como todos os planos exteriores de caos na rua, Franco retrata os pobres como bárbaros e até animalescos. Não há individualização, só destruição, morte, saqueamento, crueldade. Se alguém poderia dizer que ele queria retratar como as coisas saem do controle a partir do excesso de violência em movimentos populares, há de se indagar a mudança de comportamento quando Franco aponta sua câmera para a classe rica. Com eles, preza-se pela individualidade e desenvolvimento dos personagens, ele usa close-ups que captam os rostos daquelas pessoas sofrendo com suas perdas, seus enquadramentos são totalmente simétricos e perfeitos como na cena do cemitério, cenários limpos.

Afinal, por que o exercício cinematográfico de empatia com a classe rica enquanto nenhuma identificação é criada com a classe mais pobre? Por que uma parece civilizada e outra não? Ainda que se saiba que todas aquelas pessoas da festa provavelmente são corruptas, não há exatamente uma maior exploração disso em cena. Assim, a violência física do trabalhador sempre fica parecendo um exagero e a corrupção política da classe rica um problema menor. Quando aquelas pessoas começam a morrer na festa, Franco faz com que este momento seja sentido. Por outro lado, nas cenas de brutalidade do exército na rua, o mesmo não se sente, visto que são só figurantes descartáveis. Neste sentido, pode-se dizer que, somando escolhas de direção e roteiro, Nova Ordem é até bastante conservador e anti-revolucionário.

Uma cena chave que parece representar tudo isso é logo no início, quando o antigo empregado vai na casa pedir o dinheiro. Trata-se de uma humilhação para ele, e é normal que o diretor tente exteriorizar esse sentimento, mas o próprio modo como é executada essa sequência incomoda. O que parece é que Franco se diverte a partir da própria espera do personagem, gerando um involuntário humor a partir deste jogo de “vai-e-vem” no qual os membros da família rica fazendo com ele de bobo e chamando outra pessoa para cuidar do assunto. O uso de uma montagem dinâmica alternado com um plano-sequência evidenciam que há mais preocupação em criar um espetáculo cinematográfico a partir do sofrimento do pobre.

Ainda pensando na espetacularização em cima do sofrimento promovida por Franco, questiona-se por que ele soa tão interessado em ser um “esteta da morte”. Em um dos momentos finais de Nova Ordem, os soldados vão sendo executados, um a um, de forma extremamente plástica e rítmica, até que posteriormente seus corpos são queimados conjuntamente em um enquadramento extremamente perfeito e cinematográfico. Se o cosmos de sua obra é diegeticamente marcado pela maldade, Franco sente prazer em sua encenação.

Certas omissões e inclusões do que aparece em câmera ou não geram mais dúvidas. Se, a priori, não há problemas que uma obra tenha como tema a violação do corpo da mulher, o modo como Franco reforça tal violência parece desrespeitá-las e humilhá-las mais ainda. Na cena do banho de água fria na base militar, começa-se com planos mais fechados e eles já eram perfeitamente suficientes para passar a degradação humana da situação, mas o diretor faz questão em cortar para um plano aberto que capta toda a nudez daquelas mulheres e seu estado de decadência. Neste específico momento, cheguei a sair da imersão do filme e pensei na própria violação da câmera com as atrizes, com tudo isso sendo feito em prol do realismo cênico. Não se trata de dizer como aquilo deveria ter sido filmado, mas sim indagar o objetivo final de tudo isso senão o choque imagético barato.

No fim, a sequência de acontecimentos em Nova Ordem flerta com a resolução de que, numa sociedade da violência, os personagens (corpos) são facilmente descartados e violados, principalmente das classes baixas, mantendo-se apenas as instituições intactas. Porém, se o objetivo do longa era criar uma experiência imersiva na qual o espectador se sente impotente diante das crueldades e excessos cometidos por todos os lados, o jeito como o próprio roteiro elabora as situações de causa e consequência (a repressão com as pessoas de classe baixa só acontece porque elas mesmo criaram o caos) e as já citadas escolhas de direção por parte de Franco, dizem outra coisa.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 44ª Mostra de São Paulo. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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