O Julgamento dos Nazistas de Kiev

O Julgamento dos Nazistas de Kiev

Cinema de arquivo frontal

Wallace Andrioli - 17 de outubro de 2022

“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele está desenhado um anjo que parece estar na iminência de se afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu semblante está voltado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa a seus pés”.

(Walter Benjamin)

 

Essa cena, descrita por Benjamin no texto Sobre o conceito de História a partir de uma pintura de Paul Klee, não está muito distante daquela que Sergei Loznitsa apresenta em seus filmes sobre o passado recente da Ucrânia e da Rússia, durante e após o período soviético. Tanto em obras ficcionais como Minha Felicidade (2010), Na Neblina (2012) e Uma Criatura Gentil (2017), quanto nos documentários Bloqueio (2004), O Processo (2018), Funeral de Estado (2019), Babi Yar. Contexto (2021) e, agora, O Julgamento dos Nazistas de Kiev, Loznitsa enxerga a história da região como uma sucessão de tragédias, massacres e ditaduras.

Nesses documentários, o diretor trabalha exclusivamente com imagens de arquivo, a partir de uma perspectiva bastante interessante: elas são montadas de forma a parecerem o mais brutas possível, sem outros tipos de intervenção (voz over, por exemplo) que ressaltem sua dimensão de construção. Aparece nos filmes uma crença muito forte na capacidade desses registros audiovisuais de, por si só, contarem a história de um determinado evento. No caso de O Julgamento dos Nazistas de Kiev, a estrutura narrativa e o tratamento dispensado às imagens são muito parecidos com os de O Processo. Ambos abordam julgamentos históricos, ocorridos entre os anos 1930 e 1940 e minuciosamente filmados por seus promotores.

No entanto, ao mesmo tempo que busca a aparência de manutenção da integridade dessas imagens como meio de acesso direto ao passado, Loznitsa as remonta num formato que remete a filmes narrativos de tribunal. É claro que os próprios eventos, bem como a necessidade de registrá-los e a forma utilizada para tal, já apontavam para um lado espetacular, próprio do cinema. Mas o diretor ucraniano vai além e abre ambos os documentários com planos gerais das cidades onde se desenrolam seus respectivos julgamentos (Moscou, em O Processo, e Kiev, em O Julgamento dos Nazistas de Kiev), escolha estilística típica para introduzir uma narrativa encenada. O efeito ficcional é tão poderoso que, numa das sessões do filme no Festival do Rio, surgiram aplausos na plateia após o discurso final do promotor e a execução dos criminosos.

A experiência de ver esses filmes oscila entre o assombro diante de registros primorosamente restaurados de acontecimentos históricos fascinantes e um incômodo com o olhar ingênuo de Loznitsa. No caso de O Julgamento dos Nazistas de Kiev, há ainda uma pequena perda de interesse na comparação com O Processo, já que falta aqui o lado possivelmente farsesco do episódio narrado nesse último (o julgamento de um grupo de engenheiros e economistas acusados de sabotarem a industrialização da União Soviética). A frontalidade decorrente da abordagem do diretor, mas também do tema (trata-se, afinal, de um filme sobre autoridades nazistas acusadas de perpetrar atrocidades na Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial, o que não deixa margem para ambiguidades), gera momentos impactantes (o que é contado por vários réus e testemunhas, a morte dos condenados mostrada sem qualquer pudor), que reiteram a visão benjaminiana da história da região, mas tira muito da riqueza que poderia advir de um olhar mais exploratório para as imagens de arquivo.

Texto originalmente escrito para nossa cobertura do Festival do Rio 2022. Acompanhe aqui.

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