Extremo Ocidente

Extremo Ocidente

Um fantasma pelas ruínas de uma cidade.

Michel Gutwilen - 29 de janeiro de 2022

Extremo Ocidente é um tipo de Cinema enquanto campo de batalha. Repleto de estímulos, diferentes elementos vão se contrastando por meio de constantes choques, principalmente da diegese com a extradiegese. Como um genuíno pesadelo cinematográfico (pois gerado pelo Cinema), diversas frentes do filme vão deixando aquele universo extremamente maldito. Muitos ruídos indistinguíveis e sons violam o plano (a melhor cena do filme deve ser a das bombas sonoras), sua montagem corta violentamente para lugares inesperados e o aspecto digital da fotografia também deforma aquele universo que às vezes se torna apenas um conjunto de camadas de pixels incompreensíveis. Se o mundo que é mostrado pela visão das câmeras aparentemente soa “normal”, é através desses estímulos, do trabalho do Cinema enquanto crença na ficção, que ele se transforma em um universo apocalíptico pertencente a uma outra realidade.

Como outras ficções futuristas do Cinema brasileiro contemporâneo (penso em Branco Sai, Preto Fica e Abjetas 288), Faro é muito habilidoso em ir construindo paralelamente a jornada espiritual de seu protagonista o que não deixa de ser uma apresentação de seu universo apocalíptico, se permitindo construir uma mitologia própria a partir de várias pistas. Uma suposta guerra no passado que sumiu com a população, animais mortos pelo caminho, a alimentação por meio de carne de cachorro e chá de fita, o figurino alternativo do personagem vivido por Bruno Lisboa e a presença de um monstro canibal vão encorpando esta ficção muito econômica visualmente, mas imaginativa em ideias e na habilidade de manipular a mise-en-scène para criar.  

Na superfície, o soldado vivido Miguel Clark anda por um não-lugar impossível de mapear, já que a montagem não segue nenhuma continuidade espacial, escondendo a dimensão do suposto mundo apocalíptico em que ele se passa, com a câmera limitando a visão apenas à fragmentos de paredes pichadas, terraços vazios, esgotos e escombros de uma cidade em ruínas. É Brasil, Ano Zero. Naquele looping, o soldado parece uma alma condenada a repetir gestos militarizados vazios, a viver este purgatório em um estado de constante vigilância, à espera de algo a acontecer, a ser atacado. Existem até filmes nesse aspecto de soldados vivendo uma guerra imaginária, como o recente Guerra (José Oliveira e Marta Ramos, 2020), um curta de início de carreira de Werner Herzog, A Defesa sem Precedentes do Forte Deutschkreuz (1967) ou o mais conhecido Beau Travail (Claire Denis, 1999) mas aqui não há a dimensão política que essas obras carregam. Até Sombra, longa anterior de João Pedro Faro, ainda se localizava dentro de um Brasil real e algumas de suas questões dentro dele (principalmente sobre ócio da classe média e sua violência). Já Extremo Ocidente (não) se localiza em lugar algum, não comenta sobre nada, é pós-Brasil. Que o filme possa ser lido contemporaneamente enquanto sentimento “pandêmico” é verdade, principalmente pelo teor apocalíptico e de isolamento, mas isso seria contê-lo dentro de uma temporalidade a qual ele não pertence, existindo muito mais na atemporalidade de uma dimensão existencialista do ser humano. 

Independente de quando viaja entre a sombra e a luz (dia vs. noite é um contraste muito presente no filme), o mundo de Extremo Ocidente é marcado por esse mal-estar, esse sentimento de marasmo que Faro já havia trabalho em Sombra, de um vazio sem esperanças, de uma solidão que não parece ter fim. Se há uma espécie de conforto no filme é justamente a partir do encontro entre as duas almas perdidas, seja no momento em que uma refeição é compartilhada ou até no ritual canibalesco. Do mesmo modo, a narrativa mostra valorizar os vínculos emocionais e humanos ao se abrir e encerrar olhando fotos que trazem uma carga dramática de um passado pertencente àquele protagonista. Diferente dos protagonistas de Sombra, que possuíam menos complexidade e eram mais receptáculos vazios de uma certa juventude que qualquer um podia se botar no lugar, o fantasma de Extremo Ocidente é mais denso de background. De quem ele sente saudades? Quais são suas memórias e pelo que ele é atormentado? Tudo isso dá peso em sua caminhada. Em igual complexidade, a figura do soldado vivido por Miguel Clark também se torna muito maleável por João Pedro Faro, que faz dele uma figura mutável. Naquele bunker, às vezes parece uma criatura do esgoto. Andando pela cidade, parece um fantasma amaldiçoado. Outras vezes, é filmado como uma sombra. Quando é capturado, o ritual canibal traz uma corporalidade e uma visceralidade que nos lembram que ele é humano.

Por isso, é curioso como, ambiguamente, essa é a única vez em que o protagonista parece um ser vivo concreto, de carne e osso, ao mesmo tempo que também é o momento de maior aproximação humana, algo tão raro ao longo da experiência. Assim, parece existir uma linha muito tênue entre uma pulsão sexual com a de morte, da violência como um afeto, lembrar da êxtase de viver justamente com a aproximação da morte. Inclusive, um outro filme de Faro, o média-metragem Muriel, já mostrava uma predileção do autor por temas também mais espirituais, de um certo contato com o divino por meio de uma visceralidade em uma salvação do espírito que exige um sacrifício de carne. Se ao longo de Extremo Oriente parece ficar claro a falta de sentido em viver naquele mundo sem outros corpos para encontrar, seja para a guerra ou para o amor, o que acontece com ele não deixa de ser uma espécie de salvação por meio da antropofagia.

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