O Cemitério das Almas Perdidas

O Cemitério das Almas Perdidas

Rodrigo Aragão escova a história a contrapelo através de signos do terror

Igor Nolasco - 2 de outubro de 2020

A primeira imagem de “O Cemitério das Almas Perdidas”, que estreou na 10ª edição do Cinefantasy – Festival Internacional de Cinema Fantástico, é uma cartela dedicando o filme à memória do cineasta José Mojica Marins, falecido em fevereiro de 2020. Quem já está familiarizado com a filmografia de Rodrigo Aragão compreende e se sensibiliza com a homenagem: o diretor, afinal, pode ser visto como um dos pupilos de Mojica na continuidade da produção do cinema de gênero no Brasil, sobretudo no que é relativo ao terror, que consagrou os longas mais famosos de Mojica e dá a tônica à obra de Aragão.

Conquistando seu espaço no circuito brasileiro desde os anos 2000 e chegando a certa notoriedade com o longa “Mangue Negro” (2008), o incansável realizador chega a 2020 com uma nova produção que retém as características que marcam seu trabalho como um todo e dá um passo adiante tanto em temática quanto em imagem. A conciliação entre orçamentos enxutos e efeitos especiais práticos, combinação de coreografias engenhosas e maquiagem habilidosa e rica em detalhes, já é uma marca registrada do cinema de Aragão.

Em “O Cemitério das Almas Perdidas”, vê-se o seguimento da evolução plástica do cineasta, conforme o que já era identificável em seu projeto anterior, “A Mata Negra” (2018). Os longas mais recentes apresentam uma estética mais trabalhada, com mais riqueza em detalhes na construção da ambientação (ainda mais no caso do novo filme, que reconstrói períodos históricos distintos), do que produções como o supracitado “Mangue Negro” ou “A Noite do Chupacabras” (2011). A forma frontal e sem rodeios com a qual o diretor lida com a ação e com o sobrenatural em seus projetos mais antigos, ademais, permanece.

Em tempos de valorização nacional e internacional do terror psicológico mais minimalista, Aragão é um dos nomes que ainda trabalha uma abordagem remetente a Mojica, aos giallos italianos e ao gore estadunidense (“Mangue Negro” pode ser lido como um equivalente brasileiro ao “Evil Dead” de Sam Raimi). Ambas as abordagens resultam filmes interessantes. É possível dizer que o Brasil está vivendo nesses últimos anos uma espécie de nova primavera do cinema de terror (que sempre existiu por aqui, mesmo durante os períodos em que esteve relegado ao terrir ou ao underground), na qual Aragão se destaca como um dos realizadores mais prolíficos.

Aqui, a preocupação do realizador não está em, através da linguagem do terror, retratar um incidente isolado em um microcosmo que lida com o sobrenatural, mas sim em revisar a história do Brasil através de elementos-chave para a formação do país e ressignificar esse passado através dos signos do gênero. O filme lida com tais elementos sem demagogia, falando sobre eles como realmente são: responsáveis pelos genocídios, pelos banhos de sangue que estão por trás da criação do país como o conhecemos. A colonização, a escravidão e o assassínio de populações indígenas são mostrados com brutalidade. Ao parear  aspectos da cronologia brasileira a uma narrativa que os integra a elementos do sobrenatural, o cineasta faz, à sua maneira, um exercício de “escovar a história a contrapelo”, para utilizar a expressão cunhada por Walter Benjamin. Redescobre o mito fundador da nação a partir da ótica dos oprimidos sem eufemizar as ações dos opressores.

Esse viés social é parte indissociável do cinema de Aragão, mesmo que geralmente não dite o debate no que se refere ao mesmo, que tende a dar mais destaque à habilidade que o cineasta tem com os efeitos práticos. Sempre esteve ali, no entanto – basta lembrar que “A Noite do Chupacabras”, por exemplo, é no fundo um filme sobre disputa de terras. O que “O Cemitério das Almas Perdidas Faz” é ampliar em escopo as discussões sobre os problemas seculares do país, já presentes, de uma forma de outra, em seus projetos anteriores. Aqui eles assumem um papel central narrativa e esteticamente, em detrimento de estarem presentes mais como subtexto ou como pano de fundo para o desenrolar da ação.

Aragão sempre soube lidar com limitações. Não apenas limitações orçamentárias, como também limitações de espaço (seus primeiros filmes são rodados em locações reduzidas), de como trabalhar o gore através de efeitos práticos com pouca ou nenhuma intervenção do digital, de como mediar os tópicos de interesse de cada filme através do terror. Desde os primórdios, sua filmografia é um ode a driblar todo e qualquer tipo de dificuldade, e a cada filme o cineasta parece mais seguro e mais confortável no controle de sua direção. Ademais, transparecem em seus últimos longas valores de produção que indicam orçamentos maiores. Nada disso é gratuito, tudo é utilizado em favor da linguagem. Se filmes como “Mangue Negro” seguiam eventos quase episódicos, “O Cemitério das Almas Perdidas” é, de certa maneira, um épico do horror brasileiro.

Em termos de estrutura, o novo filme herda os padrões dos longas anteriores do diretor. O prólogo, que em Aragão geralmente apresenta a ameaça principal fazendo com que ela arrebate figuras inocentes oblíquas à sua presença, aqui é utilizado para dar ao espectador o primeiro vislumbre da seita que será a grande vilã ao longo da próxima hora e meia de projeção, que chega ao Brasil através dos navios tripulados por colonos europeus. O estabelecimento da seita logo nos primeiros momentos do filme, seguido de um processo cuidadoso de entrelaçá-la tanto ao percurso histórico do país quanto à narrativa fílmica, é quase que, guardadas as devidas proporções, um avatar para o que Aragão faz enquanto realizador: trazer o sobrenatural ao território a ser explorado.

A diferença entre o texto fílmico e as ideias extrafílmicas está, evidentemente, nas intenções: se as da seita são as piores possíveis, alicerçadas no genocídio, as de Aragão são as melhores: fazer uma provocação, mexer onde incomoda, pôr o dedo na ferida, nessa ferida de 500 anos que é o Brasil.

O cinema brasileiro sempre teve um viés social. Do pioneirismo que surge em regiões distintas ao redor do país ao cinema de estúdio do Rio e São Paulo, do Cinema Novo ao Cinema de Invenção, da Boca do Lixo ao período da retomada a partir dos anos 1990, passando por uma miríade de gêneros, a vida das populações periféricas, o abismo social entre os mais ricos e os mais pobres e um olhar aguçado em relação à história do Brasil sempre estiveram entre as pautas de uma série de cineastas de primeiríssima qualidade.

Aragão é mais um dos nomes a integrar esse panteão, à sua própria maneira. Seu cinema está longe de seguir o tom dos filmes nacionais que hoje ocupam boa parte dos festivais de cinema do país e do exterior, em geral mais sóbrios e detentores de uma estética bem particular. Não deixa, no entanto, de compartilhar com tais filmes algumas das mesmas preocupações, chegando inclusive a ir ainda mais longe no que se refere à exposição da gênese do âmago do povo brasileiro.

Com “O Cemitério das Almas Perdidas”, de longe seu filme mais ambicioso em escala e em temática, Rodrigo Aragão prova que está longe de perder o fôlego e ainda tem muito a mostrar. Quem se aventurar por sua filmografia irá encontrar longas únicos no cinema brasileiro, que somados ao filme de 2020, criam uma expectativa otimista em relação a seus projetos futuros.

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