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Ainda sonhando: o cinema virtual de Phil Solomon

Ainda sonhando: o cinema virtual de Phil Solomon

Cineasta explorou as possibilidades tanto do analógico quanto do digital

João Pedro Faro - 12 de maio de 2019

“O que me impressionou sobre os videogames foi como eles eram belos. Tinham coisas como grama mexendo na ventania. Aquilo não iria te ajudar a matar alguém melhor ou deixaria a matança mais divertida; só estava lá, por criatividade e direção de arte. Eles tinham algo único. Queriam fazer um mundo onde você pudesse brincar, o que é a fantasia de qualquer criança, inventar todo um mundo… Eu estive lá para dar uma volta, assim como eu faria no mundo real. Eu sentei ao pé de uma árvore e assisti ao pôr do sol, coisas assim”.

– Phil Solomon

No final de abril, aos 65 anos, faleceu o cineasta e professor Phil Solomon. Com uma carreira que data desde os anos 70 até a década atual, Solomon passou por diversas transformações em seu trabalho, dentre videoinstalações e curtas-metragens. O nova-iorquino compartilhou da escola de nomes como Stan Brakhage (1933-2003), um recorrente colaborador e fonte de inspiração mútua, e viu seu cinema transmutar-se de experimentações analógicas e químicas para universos digitais. Parte de sua notoriedade surge especialmente de seus filmes dentro de espaços dos jogos da série Grand Theft Auto (1997-), especialmente os realizados entre 2007 e 2009.

Com uma relação sempre estreita com o luto (seus filmes de GTA foram feitos, em parte, para um falecido amigo), seria um pouco óbvio pensar que um diretor experimental se apropriando da imagética dos videogames estivesse sugerindo por ora que não existia mais brilho ou pelo menos não era mais visto brilho algum no cinema. Ainda mais em momentos pontuais de seus filmes, como no longo incêndio de uma sala de cinema da cidade virtual de Liberty City registrado em Last days in a lonely place (2008). Mas a verdade é que Solomon nunca foi tão cínico e tão simplista assim: seu ideal sempre foi de uma exploração genuína dos espetáculos ocasionais que essas novas mídias sugerem.

Uma parte recorrente e essencial desse cinema de invenção que é a exploração potencializada de banalidades. Tanto em seu curta de 1989 Nocturne (analógico) quanto em trabalhos como Still dreaming, still raining (2009, filmado dentro de GTA IV) a busca por incidências luminosas cinéticas parece a mesma, por mais que habitem realidades opostas. A questão de Solomon enquanto cineasta foi nunca negar qualquer realidade, pois mesmo a realidade virtual é uma realidade por si só e nela os conflitos da existência ainda se manifestam de jeitos registráveis.

Se habitamos novas realidades, a compreensão de seu espaço por si só já é uma jornada filmica e ocasionalmente melancólica. Ainda existe naquele universo digital a busca pela mimese da nossa realidade cotidiana, mas ela está fadada a programações que tornam fenômenos imprevisíveis e aleatórios como a direção do vento, o formato dos reflexos e o movimento da água repetições de um cenário já pré-formulado. Isso torna os personagens que Solomon filma (e não seria ele mesmo esses personagens, na forma dos avatares que exploram esse espaço?) fadados a uma solidão mais veloz, mais intensa, pois parecem limitados a certos gestos e configurações que provocam seu senso de existência. É justamente disso que trata Rehearsals for retirement (2007), provavelmente seu curta mais celebrado do período e um trabalho chave para compreender seu esforço enquanto artista.

Essa velocidade dos sentimentos de solidão impulsiona o gesto da destruição, tentativas de descobrir novos arranjos dentro do mundo programado. Explosões, aviões caindo, mergulhos em um mar revolto que parece não terminar em um cenário finito… Tudo acaba sendo sobre assistir aos espetáculos das possibilidades de um universo sonhado como um de total liberdade para seus habitantes. Mas, se é terminado e rodeado por paredes invisíveis, bugs ocasionais e programações repetitivas, parece que Solomon integra o ideal de que a liberdade é um estágio ainda inabitável, ainda inconcebível, porém não há nada fatalista nisso: ainda existe muito para ser visto e registrado, a contemplação é a parte presente e passível das realidades que vivemos.

Em certo momento de Last days in a lonely place, ouvimos o monólogo de Bogart em No silêncio da noite (1950), de Nicholas Ray. O personagem recita uma ideia de diálogo em um roteiro seu, que depois é repetida pelo próprio como uma verdade de sua vivência: “Eu nasci quando ela me beijou, eu morri quando ela me deixou. Vivi por algumas semanas enquanto ela me amou”. A inserção sonora desse pilar cinematográfico do Ray reaproxima Solomon da exploração da experiência humana, seja ela como pessoa ou como avatar, enquanto subordinada a finais e recomeços, a ciclos de programação que obedecem à ação e reação.

Nesse mesmo curta, momentos depois, o avatar pula do alto de uma ponte apenas para reaparecer em outro espaço e existir de outra forma. É o encontro de Solomon com o lirismo de todas as capacidades dos novos mundos em exprimir agonias e conflitos de mundos anteriores. Por isso mesmo o cinema pegando fogo em Last days não é um apontamento para um mundo anterior destruído, mas sim a observação desse mundo com a movimentação das chamas programadas, do fogo virtual que o torna algo novo, que gera uma perturbação hieraclítica.

Solomon terminou sua filmografia com a parte final de uma sequência de curtas feita ao longo da carreira, consequentemente passando por todas as fases do seu trabalho. Psalm IV: “Valley of the Shadow (2013) explora paisagens oníricas da série Dark Souls enquanto John Huston narra um texto de Joyce. Mais uma vez, talvez como grande e acidental despedida, Solomon assiste a um novo mundo e encontra nele os sonhos que sonhou na realidade em que viveu. Como no excelente The emblazoned apparitions, também de 2013, onde Solomon movimenta, circunda, descasca, desintegra e remonta o ideal da película com trechos de Chaplin e Keaton, Psalm IV mostra o diretor em um inesgotável estado de experimentação, e é isso que o torna tão consistente. Em qualquer tempo, em qualquer método, qualquer sonho e qualquer registro, o mais custoso sempre vai ser a luz e a imagem e movimento.

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