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O gestualismo de Marie Menken

O gestualismo de Marie Menken

Marie Menken nos oferece um caso emblemático para a compreensão de um período que contava com um rico intercâmbio de ideias de várias práticas artísticas

Nicholas Correa - 18 de junho de 2021

No espírito moderno das utopias, o empreendimento do artista, como a maioria dos demais grupos das humanidades que se reconheciam como modernos, se direcionava antes de mais nada a uma noção de futuro. Uma parte desse olhar moderno em direção ao futuro permitiu no começo do século XX uma possibilidade de hibridização das artes. Desde o impulso pioneiro dos curtas de Maya Deren, o cinema de vanguarda americano sempre se beneficiou de um rico intercâmbio cultural, filosófico, ideológico e formal com as outras artes. Na altura dos anos 60, na cena nova-iorquina do cinema de vanguarda era raro encontrar um cineasta que não tivesse uma experiência prévia na pintura ou na poesia, na música, nas artes plásticas, entre outras artes.  Dentro das formas líricas e românticas que dominaram o campo do cinema, domínio presente desde as primeiras experimentações de Deren na década de quarenta até o choque de sensibilidades dos anos 60, Marie Menken nos oferece um caso emblemático para a compreensão de um período, ao mesmo tempo rico e turvo, no qual nos debruçamos com uma distância de mais de meio século.

Se hoje reconhecemos Stan Brakhage como o pivô de uma gama imensurável de obras de cunho epistemológico e por sua relação estreita com a pintura expressionista abstrata, em particular por seus filmes com pinturas e rabiscos imprimidos na película, é preciso salientar que o campo de ideias de cunho epistemológico e de técnicas similares já tinha sido aberto há algum tempo. Explorando esses antecedentes, vale chamar atenção para Menken, cineasta que iniciou a carreira na pintura. Junto de seu marido e artista Willard Maas, Menken já dividiu o apartamento em Nova York com Brakhage antes deste escrever seus postulados em Metáforas da Visão e realizar suas incursões líricas de maior reconhecimento. Ambos os cineastas abraçaram o lírico de maneiras similares, P. Adams Sitney, no seu livro seminal Visionary Film, classifica-os como parte do que ele chama de “filme lírico”. Nesses filmes, segundo Sitney, o espaço do enquadramento já não funciona exatamente como uma representação mimética perfeita ou como uma “janela para a ilusão”. Menken e Brakhage partiam de um esquema centrado precisamente nos processos subjetivos e idiossincráticos do realizador, o cineasta é ele mesmo o protagonista de seus filmes.  Ao se deter em Notebook, filme de Menken realizado em 1962 e que compilou gravações da realizadora de vários momentos de sua carreira, Sitney nota algo curioso nessa antologia. Enquanto seus contemporâneos ainda estavam demasiadamente ligados a uma carga mitológica, a cineasta/pintora já explorava dinâmicas próprias do quadro e da tela. Ao olharmos para os filmes de Menken, notamos como as noções espaciais e figurativas são obliteradas, suas imagens raramente possuem profundidade ou apresentam um espaço tridimensional, o campo da visão é achatado pela tela plana. 

A força do cinema de Menken vem de um poder de abstração que é atingido por meio de um uso singular da câmera, o dispositivo de representação figurativa que torna-se um instrumento no qual o artista desafia a figuração e, por consequência, a transparência do meio. Tomemos como exemplo Lights de 1966, filme no qual Menken reduz a exposição da câmera em um ambiente noturno de modo que apenas as luzes da cidade tornam-se visíveis, sejam elas os faróis dos carros, uma decoração natalina, sinais de trânsito, postes, etc. Ao movimentar a câmera rapidamente, pontos de luz tornam-se feixes, em um gesto idiossincrático da artista as luzes ganham um comprimento e um formato específico. Lights possui uma relação ambivalente entre o que advindo da vontade da artista e o que é exterior à ela. O filme, de uma maneira, nos lembra vagamente o paradigma impressionista de não pintar objetos, mas a luz que emana deles. Mas esse paradigma é transcendido quando o movimento realizado com a câmera transforma o próprio registro em traços gestuais intrínsecos do artista. Como notaria a crítica Annette Michelson naquele mesmo ano em Film and the Radical Aspiration, ensaio escrito para a Film Culture, boa parte do interesse na vanguarda do cinema vem desse trabalho de reformulação e questionamento da técnica que, com a acessibilidade que a mídia tinha nos anos 60, atinge uma dimensão quase lúdica. A câmera, como nota Michelson, não seria mais necessariamente uma ferramenta de “escrita” pessoal nas definições de Alexandre Astruc, ela torna-se um “brinquedo”. 

Essas novas receitas de sensibilidade almejavam explorar o que há de particular e essencial em cada técnica, mais uma vez visando abrir caminho para as formas futuras, e isso era tão válido para o cinema quanto para uma forma de arte como a pintura. Já libertada do rigor figurativo desde Kandinsky, mas também já nas vias dessa libertação desde o surgimento da fotografia, a pintura parecia ter encontrado no expressionismo abstrato uma espécie de apogeu para as categorias de movimento. Dentro da vontade moderna pela purificação das formas de arte, o expressionismo abstrato havia depurado o gesto dentro da pintura por meio de pintores Jackson Pollock, Willem de Kooning, Franz Kline e outros representantes da action-painting,. Nessas telas o espaço é na melhor das hipóteses uma categoria especulativa, especialmente para Sitney que concebe o quadro do expressionismo abstrato como evidentemente “plano”. Porque, para um pintor como Pollock e De Kooning, o fazer artístico estava relacionado à depuração dos movimentos. O  crítico de arte T. J Clark, no ensaio O pequeno em Pollock, nos oferece algumas observações que podem servir como pontos de interseção entre o trabalho do pintor com Menken. O primeiro vem com uma observação sobre o caráter metafórico de suas pinturas (aqui podemos falar de pinturas como Ocean Greyness ou Autumn Rhythm) e dos escritos do pintor em seu caderno. A arte, pelo menos segundo esses paradigmas, se ocupa dos ritmos e dos movimentos não como uma categoria puramente imanente ou puramente individual, solipsista, “mas para apreender o ponto essencial em que o mundo físico pode aparecer numa pintura de modo inumano”. Poderíamos aplicar uma lógica semelhante em Menken, seu trabalho não descarta uma dimensão de alteridade, mas parte dessa alteridade para a abstração por meio do movimento. 

A uma certa altura de seu ensaio, Clark chega ao célebre filme de Hans Namuth sobre Pollock dentro de seu ateliê, Jackson Pollock 51. Com acesso a materiais que ficaram de fora do corte final de Namuth, Clark chama atenção para os movimentos que o pintor realizava por cima da tela ao gotejar a tinta, movimentos precisos e repetitivos. Entre parênteses ele afirma que essa impressão pode ter sido provocada pelo fato daquele trecho em particular ter sido acelerado por Namuth, mas que a aceleração acabou por desvelar “a verdade da ação”. Se debruçar sobre esse trecho do texto é arriscado e com certeza foge dos objetivos de Clark, mas ele nos revela, quase que por contingência, um aspecto do filme de Namuth que é de particular interesse quando tratamos de uma interseção entre essa categoria de pintura e o filme de vanguarda. Dentro dessa relação de movimentos gestuais do artista e movimentos do que é extrínseco a ele, movimentos do mundo, Menken explora o mundo através de seus ritmos naturais e dos ritmos de suas técnicas. Em Go! Go! Go! de 1964, vemos o mundo com a velocidade acelerada e, por meio dela, tomamos uma outra consciência sobre os ritmos urbanos de Nova York. Mas não apenas os ritmos urbanos tornam-se visíveis, o movimento de Menken atrás da câmera, se deslocando pelas ruas, torna-se muito mais acentuado. O paralelo com o filme de Namuth é quase um acidente feliz, mas diz bastante sobre como a ação se manifesta de formas distintas na pintura e nos filmes. O ponto de partida de Menken é um mecanismo feito para fins de transparência, essa faculdade do registro é anterior ao que ela irá realizar com o mecanismo. Pollock, por sua vez, possui seu próprio gesto como marco inicial. Tendo em vista a dicotomia de uma arte que se coloca entre o que é próprio do mundo e o personalismo do artista, algo caro para a arte romântica e com o expressionismo abstrato incluso nela, Menken oferece uma obra emblemática dessas noções românticas. Suas dinâmicas de movimento tensionam o registro ao seu limite.

Muitas vezes não podemos afirmar se Menken cria ritmos próprios a partir de fatores externos ou se ela realiza o caminho contrário, parte de um gesto próprio para dar uma nova luz ao mundo. Podemos ver algo similar com o que ocorre em Lights, a operação da câmera oblitera o espaço tridimensional em uma abstração em uma tela plana, em Arabesque for Kenneth Anger, filme que Menken realizou no palácio de Alhambra. Ao movimentar a câmera rapidamente em gestos circulares e repetitivos pelos arcos e pelas paredes, vemos os arabescos ganhando formas peculiares dentro do espaço planificado da tela. Como Sitney nota, Menken sabiamente inseriu uma metáfora desse achatamento da tela logo no primeiro plano do reflexo de uma das torres no espelho d’água do pátio. Os arabescos desempenham uma função curiosa no filme, Menken parece aproveitar uma cinética implícita nas formas rígidas e imóveis da arquitetura. Algo similar pode ser visto em Andy Warhol, retrato do artista que pode ser de fato um dos curtas mais emblemáticos da artista. Menken consegue um efeito similar ao dos arabescos ao passear com a câmera por uma fileira das serigrafias de Warhol e dá a elas uma qualidade quase animada. O caso de Andy Warhol é exemplar para a indefinição sobre a ordem dos fatores a que me refiro, pois Menken mescla esse trabalho da câmera pelas serigrafias com a velocidade acelerada do filme. A aceleração do filme mostra dados curiosos sobre os ritmos e as ordens próprias do ambiente da “fábrica” de Warhol. Também é curioso notar como Menken parte de uma proposição artística quase antitética à sua para dar vida às suas formas particulares. Reiterando essa relação ambivalente das vontades do artista romântico com uma dimensão de alteridade, é quase uma ironia poética que Warhol estivesse almejando uma definição artística bem longe das aspirações românticas e líricas, as mesmas que dominavam a seara do cinema experimental americano durante as duas décadas anteriores.

No cinema americano, a influência crescente da arte minimalista aliada ao ressurgimento das premissas dadaístas nos anos 60 (um de seus pivôs sendo o próprio Warhol) romperam com o predomínio lírico e romântico do campo. Se uma parte da carga romântica “original” persiste no cinema de vanguarda de hoje, não só no americano, é preciso ressaltar a influência predominante de Brakhage nesse cenário, com seu questionamento epistemológico sendo sentido até hoje. Mas se existe um trabalho que é de alguma maneira semelhante ao de Marie Menken no cinema de hoje, esse trabalho é a série Bookanima do animador Shon Kim. Trabalhando com figuras e artigos impressos, Kim consegue um efeito similar ao de Menken e ao dos pioneiros da animação. Guias visuais de dança, de luta, natação e até mesmo um compilado de obras de ninguém menos que Andy Warhol, tornam-se pequenos filmes. É sempre com ressalvas que falamos das vontades artísticas na contemporaneidade, com paradigmas sempre incertos e frágeis, embora seja possível que parte da aspiração moderna tenha persistido, apesar da mudança de técnicas, de materiais e de formatos. Uma vontade que persistiu justamente por se direcionar para um futuro possível e se realizando enquanto uma ideia moderna. O trabalho de Menken e dos expressionistas abstratos, Pollock em particular, exploram um problema fundamental dos modelos da arte em que o artista e a infinidade de coisas que o cercam são chamados em questão, cada qual só consegue se dimensionar com o outro.

Bibliografia:

CLARK, T. J. “O pequeno em Pollock”, in: SALZSTEIN, Sônia. (org.). Modernismos. São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 39-61.

MICHELSON, Annette. “Film and the Radical Aspiration”, in: SITNEY, P. Adams. (org.). Film Culture Reader. Nova York: Praeger, 1970, pp. 404-421.

SITNEY, P. Adams. “The Lyrical Film”, in: SITNEY, P. Adams. Visionary Film – The American Avant-Garde, 1940-2000. Nova York: Oxford University Press, 2002, pp. 155-186.

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