Seguindo Todos os Protocolos

Seguindo Todos os Protocolos

A sátira sobre neurose, hipocondria e tesão acumulado na pandemia.

Michel Gutwilen - 25 de janeiro de 2022

Em Outubro de 2021, o festival Olhar de Cinema, em sua versão online, escolheu como filme de abertura O Dia da Posse, filme tematicamente contextualizado na pandemia e que oportunamente também está na atual edição da Mostra de Tiradentes 2022. Na ocasião, fiz um questionamento/previsão que acho de importância reviver e checar se envelheceu bem ou não: “Cinema e mundo andam em ritmos diferentes. Afinal, em 2020, no auge da pandemia, as obras escolhidas para as seleções de festivais de Cinema foram feitas, em sua maioria, anteriores a ela. Enquanto isso, é perto de 2022, quando o mundo caminha para uma volta à normalidade, que chegarão com força os filmes verdadeiramente pandêmicos. Assim, será que esses filmes, que foram pensados para serem espelhos de nosso tempo presente, na verdade, já nascerão “atrasados”, mais como um retrato do passado? Será que o timing foi perdido ou essas obras sobreviverão sem o “calor do momento”? Estarão as pessoas cansadas de olhar em looping para a pandemia? Terão curiosidade de ver o que foi feito criativamente em termos de Cinema por conta das limitações impostas a estes realizadores? Só o tempo dirá.”

Alguns meses depois, Seguindo Todos os Protocolos, de Fábio Leal, “abre” (o 1º filme a ser exibido) na Mostra Aurora dentro da Mostra Tiradentes (2022), o que não deixa de ser simbólico. Admito que adentrei na sessão (no online, “dei play”) com uma certa “preguiça” ao ver que se tratava de mais uma história pandêmica sobre rotinas caseiras em confinamento. Afinal, como na previsão que fiz no texto sobre O Dia da Posse, a pandemia caminha para dois anos de existência, de modo que este é um “gênero” que já se tornou tanto saturado nos festivais online, assim como também, pelo menos entre a maioria das pessoas, o isolamento social e a falta de interação humana já não são mais uma questão (seja temporariamente ou definitivamente), de modo que esses filmes herméticos sobre o ato de se isolar, de certo modo, ficaram datados. 

Contudo, me surpreendi positivamente com este revigorante filme que existe como um olhar absurdo e satírico sobre o contexto de isolamento. Apesar de ter seu flerte com o drama em momentos melancólicos, sua narrativa funciona muito mais como uma comédia de esquetes sobre um homem hipocondríaco tendo que conciliar seu tesão acumulado de meses com o medo da contaminação por COVID, o que gera momentos criativos, engraçados e exagerados. Ao chegar ao marco de dois anos de pandemia, em que quase ninguém mais segue todos os protocolos, esse distanciamento dos piores tempos vividos permite com que se olhe de maneira afastada e identifique, de fato, o absurdo que eram os rituais vividos por pessoas quarentenadas, além de todas as exageradas paranoias. 

Como um próprio filme que privilegiadamente existe dentro de uma dilatação temporal da pandemia, a narrativa consegue até incorporar diferentes “épocas” da mesma, em um contraste humorístico que fica bem explícito pelas cenas de sexo. No momento mais grave da pandemia, os personagens começam separados por uma cortina de plástico; em um segundo momento eles ficam nus, mas de máscara; e, em um terceiro, pós-vacinação, eles se permitem tirar qualquer proteção. Assim, não é um filme que “fica parado” dentro de uma suposta uniformidade de uma situação pandêmica, mas que progride narrativamente conforme os avanços do mundo real, o que também faz do filme uma espécie de relato histórico através da ficção. 

Imageticamente, para uma obra contextualizado na pandemia, em que máscaras são elementos muito presentes, fiquei pensando no quão expostos são os corpos no filme de Leal, gerando um contraste a partir dessa frontalidade da nudez com o uso de máscaras, que muitas vezes são as únicas peças que os personagens vestem. Trata-se de uma situação um tanto quanto ridícula visualmente, mas ao mesmo tempo também reveladora deste jogo de forças entre o tesão do protagonista e a situação em que vivemos, assim como do corpo enquanto uma fragilidade da existência do ser, mas também como a sua maior razão de existir.  Se os confinamentos e as barreiras físicas foram muitas durante a pandemia, a frontalidade diante do corpo parece surgir como um escape possível dentro do cinema pandêmico, buscando uma liberdade ao mirar a câmera para intimidade desses corpos e revelar universos dentro deles.

Sobre o seu humor, fiquei momentaneamente com uma certa dúvida da intencionalidade desta comédia. Afinal, estaria o filme rindo do seu protagonista comigo ou levando o mesmo a sério, de modo que a minha risada é mais por uma não-identificabilidade com o mesmo? Penso que a resposta está mais na 1ª opção e vejo o próprio olhar do diretor por seu protagonista privilegiado e sem noção de maneira autoconsciente, como feito nos ótimos filmes de Marcus Curvelo (inclusive, ator aqui, como o webnamorado do protagonista). A bem da verdade, com cenas como a do áudio no whatsapp e dele falando sobre o exame de IGG no meio do sexo, fica difícil não crer que o filme não sabe que seu protagonista é exagerado. Ora, talvez seja essa a questão: todos fomos toscos e nos submetemos a situações que, hoje, distanciadamente, consideramos ridículas e paranoicas, mas que, na época, faziam sentido por causa do medo da COVID. Se certos filmes pandêmicos existiram no contexto da descrença com o futuro e o medo do vírus, como filmes “de” pandemia, Seguindo Todos os Protocolos parece feito mais para o “pós-pandemia”, já com uma satirização dentro da vida útil de um gênero (como todos os outros passaram por esse processo: do surgimento à época de ouro aos pastiches e, por fim, às sátiras). Se possível fazer uma analogia ao filme, ele é como a leveza de uma conversa de bar que, daqui a alguns, anos falaremos entre amigos: “você lembra daquilo que a gente fazia na época do COVID?”, ao som de risos sobre algum ritual absurdo que alguém na mesa irá revelar.


Acompanhe a cobertura completa aqui.

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