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Pantera Negra

Pantera Negra

Ainda não é a prometida revolução, mas é um grande passo.

Matheus Fiore - 7 de fevereiro de 2018

“Pantera Negra” é o filme mais marcante da Marvel desde “Os Vingadores”. Independente da qualidade das obras lançadas de lá pra cá, a possibilidade de assistir a um blockbuster de elenco predominantemente negro é um marco para o cinema de heróis; o mais próximo que vimos disso foi com “Blade”, de 1998. Ainda mais nas mãos de um diretor também negro e jovem, como é o caso do talentoso Ryan Coogler (do ótimo “Creed: Nascido Para Lutar”). Os riscos eram os de sempre quando se fala de um produto do Universo Cinemático Marvel: o estúdio permitirá que o diretor imprima personalidade e nuance à obra, ou castrará as ideias e fará do filme mais um enlatado genérico?

“Pantera Negra” começa bem. O filme tem uma clara preocupação em tornar a cultura de Wakanda crível. A tradição é implacável, levando alguns personagens, em certos momentos, a tomar decisões que os desagradam, apenas para seguir o código moral da nação. Com isso, há espaço para utilizar a trama (que acompanha o início do reinado de T’Challa e seus primeiros atos como líder do reino) para fazer alegorias políticas e sociais interessantes.

A abertura do filme é importante por estabelecer dois pontos que precisam ser conectados: após ouvirmos a narração de T’Chaka, pai do protagonista que introduz a história de Wakanda para seu filho, passamos a saber que o reino descrito é uma cidade avançada financeira, social e tecnologicamente. A cena seguinte, porém, traz um grupo de crianças jogando basquete com uma cesta improvisada, em uma região pobre do oeste americano. Ali fica claro um dos objetivos a serem alcançados por T’Challa: criar uma ponte entre seu povo, que vive protegido e confortável, e os não abastados que vivem ao redor do globo.

O roteiro de Joe Robert Cole e Ryan Coogler trabalha a relação de seus personagens com o patriotismo. Todos possuem um forte instinto protetor em relação ao reino. W’Kabi (Daniel Kaluuya), por exemplo, sempre se mostra contra a chegada de estrangeiros para proteger a cultura local. Esse fato permite que haja um interessante paralelo entre essa situação e a crise dos imigrantes que ocorre na Europa. Já a general Okoye (Danai Gurira) reitera que não serve à família de T’Challa, mas à Wakanda e quem estiver no poder.

O que se desenvolve pelo restante do filme, portanto, é uma jornada tanto individual (T’Challa) quanto coletiva (do povo de Wakanda) para encontrar o meio termo entre o nacionalismo extremo e a abertura total para uma invasão cultural e política de outros países. A abordagem do nacionalismo abre espaço para discussões sobre o isolamento de nações como Cuba, por exemplo. Já a questão da invasão cultural funciona como uma alegoria para o problema da apropriação cultural, tema recorrentemente debatido por movimentos sociais.

Dentro de Wakanda, há uma boa mistura de culturas afro-descendentes. Desde as tradições de tribos africanas às pichações e referências ao hip-hop, o país parece o panteão dos signos do povo negro – e isso é válido para quebrar o estereótipo de que a África é um “todo”, quando na verdade é um continente enorme e com muita diversidade cultural. Se essa mistura se mostra atrativa visualmente, o reino, mesmo sendo cenário de boa parte da trama, não é tão bem explorado. Há as ambientações naturais, os laboratórios e salões ritualísticos. Esses funcionam. Mas a rua, que é onde a cultura deveria fluir de forma mais explícita, não é trabalhada, e traz apenas um cenário – que é utilizado em duas ou três cenas diferentes. Temos uma visão do país que se limita à alta classe e aos guerreiros, mas nunca sabemos como o povo médio está inserido naquela sociedade.

Temas sociais e simbologia dos vilões

Temas atuais marcam presença no filme, inclusive por meio de assuntos que costumam figurar em discussões sobre o racismo no século XXI. Ulysses Klaue, o vilão de Andy Serkis, por exemplo, é fã de rap (tendo, inclusive, sua própria mixtape gravada) e enriquece roubando artefatos históricos africanos para comercializar, seja no mercado negro, seja com autoridades como a CIA – qualquer semelhança com os debates sobre apropriação cultural não é mera coincidência.

A sutileza de relações como a de Klaue com a apropriação não é vista no outro vilão, Erik Killmonger, vivido por Michael B. Jordan. Aqui, o roteiro escolhe algo mais explícito, tornando o personagem extremamente político e expositivo em suas manifestações – como quando, durante uma missão, precisa ressaltar o histórico de colonização e exploração do povo negro por parte do branco. Esse elemento, porém, não surge como um defeito, já que a personalidade desse personagem é explosiva, raivosa. Erik simboliza o lado extremo do movimento negro: é um indivíduo que viveu marginalizado por toda sua vida e acabou por tornar-se alguém amargurado e violento. O filme, porém, nunca endossa suas escolhas; apenas o humaniza e expõe sua trajetória, o que faz com que Killmonger seja o personagem com mais camadas na obra.

Pelo extremismo e pela força (tanto física quanto de presença) do personagem de Michael B. Jordan, é possível traçar um paralelo entre a relação de T’Challa e Erik com a de Batman e Bane no filme “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, já que ambos os vilões representam o nêmesis político e moral de seus heróis – e estes precisam, metaforicamente, ressurgir e se reinventar para fazerem frente à ameaça trazida pelos adversários.

“Marvelvírus” e pasteurização da narrativa

Mesmo sendo um marco para o gênero e para o cinema blockbuster, aos poucos “Pantera Negra” passa a ser consumido pela “fórmula Marvel”. Os traços criativos que davam personalidade param de ser trabalhados, e os personagens mantém uma unidimensionalidade que incomoda. Com exceção do vilão de Michael B. Jordan, não há novas nuances temáticas, apenas mais personagens e mais subtramas. E aí vem a mais triste constatação: “Pantera Negra” se torna, a cada cena, mais enlatado.

O “Marvelvírus” impede, inclusive, que “Pantera Negra” tenha um clímax digno. As piadas crescem progressivamente conforme o filme se aproxima de seu ápice, e momentos que deveriam ser de tensão são constantemente interrompidos por “sacadinhas”. Além disso, soluções simples demais tornam a jornada de T’Challa e seus amigos simplória. O obstáculo sempre é superado por ações banais, como um personagem em uma sala comandando um drone à distância. Até o interessante vilão de Andy Serkis acaba reduzido a um estereótipo mecânico, fazendo uso de piadas e frases de efeito para marcar presença.

Totalmente desinteressado em explorar a psique de seus personagens, “Pantera Negra” se torna um filme marvelisticamente megalomaníaco, que precisa de conclusões grandiosas, recheadas de batalhas paralelas e efeitos visuais impressionantes e pouco críveis. Até mesmo os combates são decepcionantes – o que espanta, já que as cenas de luta são o ponto alto de  “Creed”, filme anterior de Coogler. Os confrontos ritualísticos, que deveriam ser brutais pelo impacto dos movimentos, são esquartejados pelo alto número de cortes e movimentos de câmera, que tentam mascarar a violência. Nem mesmo quando aposta no plano-sequência Coogler consegue êxito, já que o excesso de elementos em tela tira qualquer impacto da ação, bem como o banho de computação gráfica e a incapacidade de mascarar os óbvios cortes existentes entre as sequências de partes do plano.

Mesmo que tenha sido pasteurizado para caber na fórmula Disney – personagens do elenco “do bem” são excessivamente perfeitos e heróicos, sem nenhuma humanidade ou falibilidade moral, por exemplo -, “Pantera Negra” é, por si só, uma manifestação artística corajosa. Ryan Cogleer, mesmo trabalhando sempre com limites temáticos, estéticos e estruturais, consegue imprimir sua personalidade ao filme. É um jogo de ganha-perde. Para cada nuance que Coogler traz ao debater temas como patriotismo e xenofobia, um pacote de três ou quatro piadas fora de tom é inserido a fórceps no roteiro.

Bom, mas acima disso, um marco para o cinema de heróis, “Pantera Negra” é um filme que traz o que o gênero tem de melhor e pior. De bom há a representatividade, a oportunidade de dar visibilidade a uma parcela gigantesca da população por meio de um produto comercial multimilionário e, de quebra, usar esse produto como manifestação de questões atuais e relevantes socialmente – e vale reiterar que os temas não são meros panfletos, mas ideias trabalhadas em prol da narrativa. De mau há o impulso de manter todos os filmes limpinhos, maniqueístas e engraçadinhos. Ainda não é a revolução não televisionada que o estúdio prometeu, mas é um grande passo.

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