Entrevista com Fernanda Pessoa e Chica Barbosa

Entrevista com Fernanda Pessoa e Chica Barbosa

Wallace Andrioli - 7 de junho de 2022

Vai e Vem é o primeiro longa-metragem dirigido em parceria por Fernanda Pessoa e Chica Barbosa, resultado de um processo de troca de vídeo-cartas ao longo do primeiro ano da pandemia de Covid-19. Fernanda, morando em São Paulo, e Chica, em Los Angeles, produziram essas missivas audiovisuais inspiradas nas obras de dezesseis diretoras experimentais, buscando capturar o momento histórico vivido e refletir sobre questões íntimas e políticas.

Vai e Vem abriu o 11º Olhar de Cinema e as duas diretoras conversaram com o nosso editor Wallace Andrioli sobre a realização do filme.

 

Olá, Fernanda e Chica. Primeiramente, parabéns pelo filme! Gostaria de começar perguntando pra vocês sobre essa proposta do filme-diálogo, essa ideia de uma autoria compartilhada a distância, por meio de uma narrativa ao mesmo tempo epistolar e audiovisual. Vocês têm toda essa inspiração num conjunto de cineastas experimentais, mas a proposta do filme-diálogo em si nasceu como?

FP: O filme surge bem no comecinho da pandemia, né? A Chica tinha acabado de mudar pra Los Angeles. A gente já se conhecia há um tempão, a gente dividiu escritório, mas a gente nunca tinha trabalhado juntas, né, a gente sempre debatia muitas coisas, mas nunca tinha trabalhado juntas. E aí quando a pandemia chega, a Chica tinha acabado de mudar pra Los Angeles, eu tinha esse livro que é o Women’s experimental cinema, da Robin Blaetz, editado pela Robin Blaetz, que estava ali na minha lista de livros pra ler, e aí nesse tempo suspenso da pandemia eu falei “ah, acho que agora é a hora de eu entrar, me debruçar sobre isso, mas não quero fazer isso sozinha”, e aí mandei um PDF pra Chica por e-mail, chamei ela pra um Zoom, falei “vamos ler esse livro e ao invés da gente ficar se mandando esses monólogos gigantes de WhatsApp, ficar fazendo Zoom, né?”, que era esse momento em que estava todo mundo fazendo happy hour no Zoom, e tipo a gente também não aguentava mais fazer isso… Ao invés da gente se comunicar dessa forma, que acaba sendo uma forma muito superficial, né, você depende só da palavra pra se comunicar, só contando, eu via os panelaços e eu queria que a Chica sentisse como era estar nos panelaços, queria que ela estivesse ali comigo vendo, fazendo as projeções, sabe? Então eu vim com essa proposta assim: vamos nos comunicar por vídeo-cartas, mas seguindo essa ordem desse livro, sendo inspiradas formalmente por essas cineastas, então fazer uma pesquisa prático-teórica, ao mesmo tempo que a gente tinha essa necessidade muito grande de se comunicar, de contar uma pra outra, né, eu queria que ela me contasse como estava lá, recém-chegada nos Estados Unidos, a pandemia, ser uma mexicana nos Estados Unidos… Então é daí que surge, e a partir daí a gente já… Nesse Zoom a gente já estabelece várias regras assim, né? Eu falei: “vamos”, ela falou: “vamos! Com certeza!”, aí eu já falei “tá, mas vamos botar umas regras pra que a coisa não se perca também, não fique assim você me manda uma carta, seis meses depois eu mando outra, vamos manter, estabelecer um limite temporal, duas a três semanas, cada carta pode ter de três a seis minutos também pra não ficar muito…” Então surge disso, assim: 1) de uma necessidade real de se comunicar; 2) dessa nossa vontade de pesquisar essas cineastas experimentais e de botar isso em prática, né? Não só ler e debater, mas ler, assistir os filmes e transformar aquilo formalmente em algo nosso. Botar em prática mesmo.

CB: É, essa coautoria já foi ali, né? Na pesquisa também. Porque as duas pesquisavam os mesmos nomes e isso talvez foi a única coisa que a gente tinha troca de palavras, que a gente comentava: “nossa, caramba…”

FP: É, mandava um frame…

CB: É, era ainda limitante a conversa, mas a pesquisa, a teoria já foi feita em conjunto também, então isso foi um instrumento interessante, compartilhar uma pesquisa. Mas aí, durante o processo, a gente decidiu modificar as regras. Então, por exemplo, antes eram duas semanas, virou três. Que a vida começou a atravessar. A gente não tinha tempo pra ler tudo, o texto, ver os filmes da cineasta, e ainda filmar, editar pra responder uma a outra, então isso mudou. Mas depois, na quinta carta, foi ali que a gente decidiu modificar a pesquisa. E aí quando a gente percebe que os 16 nomes eram muito focados nos Estados Unidos, na vanguarda dos Estados Unidos, não fazia sentido assim, né, poxa, vamos só focar nisso? Não, vamos expandir. E aí só tinha uma diretora negra nessa lista, por exemplo, a gente achou importante incluir outra cineasta negra. Mas também latinas. E aí veio uma outra pesquisa, passamos a fazer pesquisa também pra encontrar esses nomes. Então, que cineastas queremos nos debruçar também, e aí puxamos nomes, vimos os perfis, entendemos qual que talvez venha a fazer sentido pra incorporar, e aí chegamos nesses outros nomes que é a Narcisa Hirsch, a Zeinabu Irene Davis que é de Los Angeles, não essa aqui eu falei “acho que é uma cineasta negra que seria interessante”, a Ximena Cuevas do México e tinha que ter uma brasileira e aí era a Paula Gaitán. Que bom que foi ela, foi maravilhoso assim se debruçar na obra dela. Então foi ali que concluímos essa escolha de teoria.

Entendi. Eu pergunto até porque na minha área, da crítica, eu tenho observado algo que eu acho muito interessante, de algumas produções de texto crítico também nesse modelo do diálogo. Acho que rompe um pouco com essa perspectiva muito individual, da autoria. E aí eu fiquei pensando também até que ponto esse processo que vocês experimentaram, num contexto que a gente vive no cinema de problematização desses cânones e de uma ideia muito consolidada de autoria, que geralmente é muito centrada na figura do diretor homem, até que ponto também esse processo que vocês experimentaram e propuseram no filme não contribui pra essa desconstrução, essa problematização desses cânones do cinema…

FB: A gente até escreveu um texto em forma de diálogo também… A gente tem vários desdobramentos dessa pesquisa: a gente fez o curta [Same/Different/Both/Neither], fez o longa, a gente escreveu um texto para aquela revista Verberenas em forma de diálogo. É mais uma perspectiva, não crítica, mas talvez de resgate histórico, né? Falo um pouco dos filmes…

CB: É uma análise mais, digamos, teórica, assim…

FB: É uma análise mais teórica. Tudo que a gente não podia falar nos filmes, a gente tentou botar ali nesse texto, né?

CB: Sim. Meio que expressamos o que nos interessava…

FB: É… e aí são seis cartas.

E que complementam o filme então…

FB: Que complementam o filme.

CB: Acho que inclusive é interessante ler esse texto com o filme…

FB: Depois. Depois de ver o filme.

CB: A gente coloca um pouco ali inclusive o que nos interessou de cada uma, assim, os filmes, referências…

FB: Essa questão da autoria é uma questão que a gente falou muito também, né? Bom, eu, é a primeira vez que eu assino uma codireção, a Chica já assinou outras codireções… Acho que ela tem mais o cinema coletivo…

CB: É, eu sempre… Eu tenho mais, eu tive essa formação através de coletivos de cinema, de teatro… Inclusive, um interesse que tínhamos era muito fazer experimentos visuais, audiovisuais, com autorias simbólicas, assim, não assinávamos com nome…

FB: Pseudônimos, né?

CB: Pseudônimos, é, porque era uma forma de contestar essas hierarquias do cinema, né? A gente queria contestar esse cinema já categorizado, convencional e me pareceu interessante assim… E sempre gostei dessa view em conjunto, mas nunca com uma mulher, curiosamente. Sempre foi com homem que eu assinava a coautoria e dessa vez…

E talvez também, não sei se vocês concordam, mas essa autoria em alguma medida compartilhada também com as diretoras nas quais vocês se inspiram, né?

FB: Sim, com certeza. 

E acho também que o seu cinema também, Fernanda, o próprio Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, a forma como você retrabalha imagens de outros filmes, né?

FB: É, eu acho que os filmes que eu fiz, eles são sempre com equipes muito pequenas, o que também não tem essa coisa hierarquizada de “a diretora”, né? É tudo muito a equipe fazendo tudo ali muito junto, tem sempre o remix das imagens que traz essas referências… Mas é diferente quando você tá dividindo assim, é outra coisa, eu acho. Acho que botar os nomes assim, essa coisa de não ser você, “ah o diretor”, tem uma mudança que é importante. A gente fazer tudo em conjunto, tomar várias decisões em conjunto mesmo, eu acho…

CB: É uma mistura de provocação e confiança, assim, sabe?

FB: É…

CB: Eu acho que também partiu muito de uma provocar a outra nesse diálogo, de estimular também, e de confiar que, enfim, cada uma vai incorporar num filme só.

FB: E eu acho que tem muito a ver com o que a gente procura na vida também, esse feminismo coletivo, assim, tá no filme isso também, né? A gente começa ali no íntimo e a gente vai pro coletivo, a gente vai pra essa comunidade de mulheres. A gente falou muito sobre isso. Talvez a forma de fazer filmes feministas experimentais seja dessa forma, uma forma mais coletiva, com essas autorias mais abertas, chamando, trazendo essas outras referências históricas, invocando mesmo uma comunidade maior, não ficando tão centrada nessa figura “a diretora”, “o diretor”, né?

CB: É, porque, por mais que um filme íntimo, estamos tendo não personagens nesse filme, acho que compartilhamos muito o mundo ao redor através de outros olhares femininos, e aquilo fazia sentido pra nós, né? Eu não consigo mais falar só de mim, eu quero falar sobre… Eu quero contar sobre o que tá próximo de mim através de outros olhares também. Eu achava que isso ia ser interessante também pra elas, sabe, entender, enfim, essas outras perspectivas.

Nesse contexto da pandemia, muitos cineastas, iniciantes ou mais experientes, sentiram uma necessidade de filmar, de registrar de alguma forma essa sensação de fim de mundo que parecia tomar conta de todos nós. Como foi isso pra vocês? O Vai e Vem nasceu de uma sensação como essa?

FP: Sim, acho que é isso, a gente precisava se comunicar, mas eu sinto que também era muito o registro histórico de um momento. Eu querendo registrar historicamente o que estava acontecendo no Brasil, em São Paulo, exatamente naquele momento, né? As eleições, tem vários momentos específicos assim desse ano. A Chica me mostrando o que está acontecendo nos Estados Unidos, o menino saindo com uma metralhadora numa manifestação e matando pessoas e depois foi absolvido. Acho que o filme é um super registro de um período assim, né? E na verdade nesse momento que o filme começa eu tinha uma esperança muito grande de que o Bolsonaro ia cair, eu achava que o caos social ia ser tão grande que talvez a gente ia conseguir uma revolução… Eu fui uma dessas pessoas que estava… Um pouquinho assim… “Hum, abriu uma brecha aqui”, parecia que tinha, apesar de muito medo, de ser horrível, eu sentia que tinha uma possibilidade de uma faísca assim no termo benjaminiano, uma faísca histórica de alguma coisa acontecer. Daí eu sentia que a gente estava registrando um momento muito importante assim, né? Ao mesmo tempo que a gente estava falando uma pra outra, eu já achava que a gente estava fazendo um registro histórico essencial de um momento que parecia que ia moldar as próximas décadas.

CB: E é curioso que depois, querendo ou não faz dois anos isso, mas a gente ficou falando depois “ah, mais um filme pandêmico”, né? E teve um pouco uma exaustão de filmes pandêmicos durante esse período, mas eu sinto que esse filme ele começa, digamos, o contexto inicial é a pandemia, mas a gente se expande pra, enfim… A pandemia era apenas um background, estavam acontecendo muitas outras coisas, muito mais assustadoras de repente, né? As mortes, as notícias já viram quase que uma rotina… Do cotidiano. E pra mim, assim, mais do que filmar esse momento da pandemia, acho que esse processo na verdade me fez enxergar, acho que esse que é o estímulo, o feeling, de enxergar ao redor, de entender… Por exemplo, pra mim foi muito particular entender esse novo lugar em que eu estava vivendo, né? Eu chego, a pandemia bate, puta que pariu, como é que eu vou me adaptar! E aí registrar isso, contar pra outra pessoa me fez ter que enxergar de verdade onde eu estava, entender meu lugar nesse novo país.

E, pensando nesse conjunto maior de filmes produzidos nesse contexto, me parece que o de vocês se diferencia justamente por se prender a um dispositivo (as vídeo-cartas, com um conjunto de regras). O quão importante foi esse dispositivo pra vocês conseguirem entender como queriam registrar a pandemia e o isolamento social?

FP: Eu acho que foi essencial. Primeiro porque ter tão pouco tempo pra transformar o presente imediato em filme já fazia com que a gente tivesse que olhar com um certo distanciamento, já tinha que digerir o que estava acontecendo de alguma forma, né? Então imediatamente você já tinha que olhar praquilo e entender o que era o essencial, como editar aquilo pra caber em seis minutos, acho que você já entendia sua realidade uma outra forma e… Trabalhar com essas referências delas, eu acho que deu essa perspectiva histórica de que: 1) a gente não tá sozinha, é uma forma de não estar sozinha, né? Não estou só dialogando com a Chica, estou dialogando com todas essas cineastas. A gente não tá sozinha, as questões que me atravessam já atravessavam essas cineastas, é… Soluções formais pra coisas que eu nem imaginava estão aqui, né, então é isso, assim, é se sentir numa comunidade invisível, conseguindo olhar pra questões, pros desafios do presente de uma forma muito poética mas ao mesmo tempo concreta, assim, com muita imediatez ter que lidar com aquilo.

CB: Não, assim, uma loucura total! Porque pensa, assim, eu retratar o íntimo, compartilhar com outra pessoa e ainda usar de referências de uma outra cineasta, é quase que um pot-pourri de emoções ali, né? Mas eu acho que era isso, era uma provocação constante assim também, né, de, enfim, como processar esse presente mas usando de referência uma outra mulher… Então, esse universo feminino se expandiu de várias formas, porque eu tinha que contar alguma coisa pra Fernanda usando referência de uma outra cineasta, mas talvez não era só uma referência estética, talvez era uma temática que essa cineasta retratava nos seus filmes que me interessava e que talvez estava dialogando comigo. Então esse diálogo com essa cineasta também foi isso, assim, era adentrando essa pesquisa de uma forma muito, talvez, emocional, talvez instintiva, assim de entender como fazer de uma teoria práxis, e que faz sentido pra mim, que eu quisesse contar pra Fernanda… Mas era uma provocação constante no sentido de que se eu colocava isso numa carta pra Fernanda ela me respondia com alguma coisa que dialogasse com essa provocação também…

FP: E causava uma outra provocação, era uma constante provocação…

CB: E com outra estética, né? A gente tinha esse interesse de não… De ter umas estéticas diferentes de cada carta também. Então era uma provocação realmente, enfim, pessoal… Acho que foi isso que fez que a gente processasse esse ano…

FP: E é isso, a gente descobriu muito que os temas nos atravessavam, né? A questão do espaço doméstico, vários temas que estão ali, o tema do corpo feminino, o espaço doméstico em que as mulheres são, né, jogadas pro espaço doméstico e a gente também estava presa no espaço doméstico por causa da pandemia…

CB: O prazer feminino, né?

FP: O prazer feminino! Várias questões que aparecem nos filmes dessas cineastas, umas que fizeram filmes nos anos 1960, 1970, ainda estão presentes, né? Então isso era muito legal de entender como isso tinha evoluído ou não. Como isso ainda é um debate pra gente, enquanto cineastas, mulheres, latinas, que fazem um cinema mais fora da curva, mais independente, mais radical…

Fernanda, queria te perguntar sobre sua relação com o cinema documentário, no sentido que acompanho seu trabalho, especialmente nos longas, e tenho observado você migrando pra diferentes tipos de registro dentro do documentário. Como você vê esse processo?

FP: É curioso porque eu acho que cada filme meu… É, eu me considero uma cineasta experimental porque eu acho que cada filme meu tem uma experimentação com a forma que me é imposta pelo conteúdo, assim, né… Eu acho que o Histórias [Que Nosso Cinema (não) Contava] tinha que ser um filme de montagem, porque eu queria entender como a pornochanchada podia ensinar algo pra gente sobre aquele momento e os filmes tinham que falar por si, né? Era isso. O Zona Árida é um filme sobre a cidade mais conservadora dos Estados Unidos, que eu filmo nos Estados Unidos, eu sou uma brasileira indo pros Estados Unidos filmar, então eu queria lidar com uma forma um pouco mais conservadora, entre aspas, de cinema, né? Assim um pouco mais tradicional, com as suas subversões ali dentro também, mas porque o meu tema me impunha isso. E agora esse filme parte dessa vídeo-carta, dessa troca com várias mulheres, com a Chica, então também é o conteúdo… Na verdade, nesse filme talvez a forma me imponha o conteúdo. Talvez esse seja um pouco ao contrário. Mas eu acho que eu tenho essa inquietação muito grande de experimentação formal e acho que cada filme meu talvez seja diferente um do outro por isso, porque eu quero encontrar qual é a forma praquele assunto que eu estou lidando naquele momento, que tá me inquietando, eu não quero impor uma forma a um conteúdo e que às vezes não casa, sabe? Pra mim forma é muito conteúdo, então acho que tem um pouco a ver com isso, assim, cada filme tem as suas inquietações, mas acho que todos são muitos ligados por uma coisa que é encontrar o político onde parece que ele não existe, sabe? Encontrar o político nesses filmes que foram muito vistos e que todo mundo falava que eram alienantes, que eram despolitizados, encontrar o político numa experiência pessoal minha de intercâmbio, de morar nos Estados Unidos, de assistir filme de high school americano, encontrar o político no nosso diálogo de amizade feminina durante a pandemia, né? Acho que é isso que liga todos.

E eu fiquei até pensando como foi pra você, Fernanda, reencontrar esse país, os Estados Unidos, que você visitou e revisitou no Zona Árida, né? E ali um pouco antes da eleição do Trump, né? E como foi isso agora, reencontrar esse país por meio das imagens da Chica?   

FP: Foi muito legal ver pelos olhos da Chica, porque a Chica, além de ser uma brasileira, ela é mexicana, então acho que essa latinidade pra ela já é muito mais clara, mais forte, enquanto pra mim foi uma descoberta, morar lá me fez descobrir que eu era latina, enquanto a Chica tem essa identidade muito forte. Mas isso apareceu até no filme, quando a Chica vai pro deserto, na carta da Marjorie Keller ela me falava assim “ah esse deserto que você conhece tão bem”, mas a gente resolveu tirar isso porque aí a gente falou “só quem assistiu Zona Árida vai…”, a gente ia remeter a um outro filme que não estava lá…

CB: Foi uma das concessões que fizemos… no corte final…

FP: É, essa foi uma das coisas que a gente falou: “O pessoal vai ter que ter visto Zona Árida, já é mais um filme pro pessoal ter no repertorio ali”, é muita coisa…

CB: Mas eu falava assim: “esse deserto que você conhece tão bem”…

FP: Então eu acho que a Chica também me mostrava coisas que ela também sabia que me interessavam, quando ela vai pro deserto ela sabe que o deserto, o conservadorismo, me interessam também.

CB: É, tem umas coisas que talvez ficaram nisso, né, porque de fato é muito de uma bolha, a California, a “commiefornia”, assim, acho que talvez isso não fique muito claro, mas de mostrar como esse meio do país é uma coisa assustadora, é outra coisa, e eu fui descobrir…

FP: Só que ao mesmo tempo a experiência da Chica é diferente porque eu fui fazer intercâmbio, eu tinha um tempo limitado pra ir lá, depois eu voltei pra fazer um filme, eu não tinha essa perspectiva de ser uma imigrante, morar lá, me adaptar, ser aceita como uma pessoa, cidadã, do lugar, né? Mas pra mim foi muito interessante ver a Chica chegando nesse lugar do “alien” que aparece no Zona Árida e de repente se encontrando lá e entendendo uma forma de pertencer através dessa identidade latina dela.

Uma última pergunta: vocês optam por encerrar o Vai e Vem num tom mais otimista, ali com aquelas imagens que misturam uma festa com uma manifestação política que também é festa, diante do horror do trumpismo e do bolsonarismo. Cada uma de vocês vive/viveu em um desses cenários, daí gostaria de saber o que cada uma considera que aprendeu com a outra nesse contexto de todo esse horror, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil.  

CB: É, bom, curioso assim porque esse epílogo, na verdade, foi uma forma da gente concluir nós duas, da nossa maneira, dessa vez sem as referências e de uma forma que fosse particularmente das duas. E era essa coisa do encontro, né, no filme, o encontro no cinema como seria possível, acho que essa imagem simboliza isso. E eu acho que pela Fernanda eu aprendi um pouco isso, assim, de como, enfim, como se conectar, como se conectar através do cinema, através do filme, eu acho que acompanhando a trajetória dela, enfim, eu consigo entender as duas como personagens também desse filme. E dela, enfim, o retrato de um país que eu deixei e quase que pensando, “caralho”, enfim, saí e piorou tudo, sabe? Eu não imaginava que poderia ser tão pior. Mas eu acho que aprendi muito sobre o que resta, né? Que a única forma talvez é a participação ativa, talvez o Brasil agora, é disso que precisa, uma participação ativa na política, né? Porque talvez só assim a gente consegue buscar a sociedade que a gente tá procurando e, não sei, aprendi que talvez o Brasil possa estar avançando através de uma força coletiva feminina, né, pelas “Juntas!” quando vi… Foi isso, assim, foi mais vendo realmente com esperança, o que tem de esperança ainda no Brasil pra gente se apegar, né? Pra gente se apegar numa mudança. Mas também aprendi muito uma relação dessa coletividade feminina principalmente, que era a primeira vez que eu estava realmente colocando em prática. Apesar de ter tido contato com outros coletivos, nos Estados Unidos eu só consegui me conectar através de coletivos de mulheres, mas fazer um filme assim pela primeira vez dessa forma, de uma forma pessoal, acho que também me fez ver outras possibilidades de criar um cinema talvez mais, enfim, libertador nesse sentido.

FP: Eu acho que pra mim tem duas coisas, talvez: foi muito rico ver a Chica se encontrando nesse lugar de reafirmar essa identidade latina, de se conectar com essas pessoas, eu sentia que ela tinha muita necessidade de me mostrar as pessoas ao redor, quem ela estava conhecendo, quem ela estava descobrindo, como ela estava se conectando, essas pessoas que estavam inspirando ela ali, fazendo ela conseguir encontrar esse terreno assim que era dela também. Então eu acho que eu vi esse processo dela assim de chegar lá e falar “onde eu estou, o que tá acontecendo?” e como no final ela fala “eu decidi ficar aqui com aqueles que não vão alimentar as máquinas”, né? É uma frase que ela fala na carta da Paula Gaitán e você vê esse… O arco da personagem dela é esse, né? A gente falou isso, que chega um momento em que a gente olha e fala: “ah, tem que ter arco?”, “a gente tem que ter um arco, aqui agora?”, e não é um arco tradicional mas eu acho que o arco da Chica é esse, né? Ela vai sobrevivendo a partir desses encontros que ela vai tendo e descobrindo essa cidade, mas eu acho que ao mesmo tempo ter esse diálogo com a Chica pra mim foi muito bom porque eu acho que me deu uma liberdade, daí eu não sei se é um aprendizado exatamente, um aprendizado conjunto assim, mas de uma certa leveza no processo de criação, de não me levar tão a sério. De ter que fazer as coisas tão rápido, tão pra ela, ela é a minha espectadora, que eu podia ter uma liberdade total e não ligar pra o que eu estava colocando ali, sabe? De eu não me sentir julgada no que eu estou fazendo, criar sem sentir que o meu espectador imediato vai logo me julgar. Então realmente fazer o que eu preciso, sem concessões, sem me sentir julgada e poder entrar nesse lugar de… Que aí eu descubro que é o meu lugar como personagem, do deboche, de ter que levar um pouco mais com leveza o que tá acontecendo no Brasil porque senão a gente não vai dar conta. Eu acho que é um pouco isso.

CB: E é isso, né? Também foi uma busca de… Porque é isso, nos interessa entender o cinema por outras referências, né? A gente, querendo ou não, vem de um universo, enfim, de uma formação não acadêmica ou de uma formação acadêmica, mas sempre referências muito masculinas. E era uma vontade, assim, só de submergir numas outras referências, nesse universo feminino que pra nós chamava, fazia sentido e resultou nesse diálogo fílmico.

FB: E a gente tem muito isso, né? Você vem dessa coisa do coletivo, do aprendizado do cinema mais empírico, mais fazendo, mais prático, e eu venho um pouco mais da teoria, né? Porque eu fiz doutorado, mestrado, então também teve esse encontro assim que eu acho que…

CB: É! Teoria e práxis!


Texto escrito para nossa cobertura para o festival Olhar de Cinema 2022. Para acessar a página da nossa cobertura, clique aqui.

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