Açucena

Açucena

Conhecendo a alma pelo ritual do espaço

Matheus Fiore - 24 de janeiro de 2021

O documentário de Isaac Donato se constrói não por depoimentos, mas pelo simples registro do ambiente da protagonista, uma senhora de 67 anos que, em todo aniversário, comemora como se completasse apenas seu sétimo ano de vida. Por mais que seja tentador fazer um estudo psicológico ou social dessa situação, a escolha de Donato, na verdade, é pelo estudo do rito por trás do evento. A celebração de mais um ano de vida é algo que mobiliza os vizinhos, engaja os amigos e familiares, faz com que todos participem de alguma forma do aniversário.

Açucena começa com um tom misterioso, com imagens escuras e uma trilha que provoca suspense, e vai ambientando o espectador pouco a pouco no cenário. Donato faz uma escolha que é essencial para sua proposta funcionar: nós somos introduzidos ao universo de Açucena não por rostos, mas por cenários. Enquanto o som traz as vozes dos personagens comentando o aniversário, a câmera procura sempre as paredes da casa da personagem, as bonecas nas prateleiras, as cores rosas vibrantes que colorem a casa onde a maior parte do filme se passa.

Há uma clara intenção de focar nos espaços, mas não nos persnagens. Os corpos humanos escapam do plano, são filmados quase sempre sem estarem no foco. O centro do plano é o ritual, é o que toda aquela celebração significa para sua protagonista. É um documentário que foge dos caminhos fáceis de estudo de personagem por depoimentos e expressões e se desenvolve mostrando como a alma da protagonista reflete em seu próprio lar. Mais interessante do que perguntar à mulher o que ela pensa ou sente é buscar entender como ela se relaciona de maneira carinhosa com tudo que a cerca. A mise-en-scene é construída de forma que não é a fala, mas o espaço o elemento revelador da alma.

Não por acaso, Donato parece mais interessado em filmar as bonecas do que as pessoas. Até mesmo quando dois personagens aparecem trabalhando nos preparativos da festa, quem está no centro do plano é a boneca. Constrói-se, assim, um filme que não é impessoal, mas que anula a individualidade; uma obra que trata com carinho o empenho de cada pessoa para que o ritual siga conforme o planejado. Um empenho coletivo em prol de algo tão simples quanto um aniversário infantil. Não deixa de ser também, portanto, um registro de um senso de comunidade, de um espírito coletivo movido por uma pessoa. Conhecemos a protagonista não por meio do encontro direto com a própria, mas pelo amor e carinho com que todos ao redor a tratam.

É nítido o esforço (bem-sucedido, diga-se de passagem) para tornar a mulher uma figura mística, distante. Como se só pudéssemos nos aproximar dela após entender o mundo que é  criado ao longo da narrativa. A fantasia é o meio para se chegar ao real. Um documentário que sabe utilizar as nuances de seus gêneros (fantasia e terror) para estabelecer nossa conexão com uma figura pouco comum, que não existe para ser compreendida, mas reverenciada, como se fosse uma entidade.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui

 

Topo ▲