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“Good Omens”, adaptação televisiva do livro de mesmo nome escrito pelos britânicos Neil Gaiman e Terry Pratchett, tem na leveza seu maior trunfo. O batido tema “fim do mundo” não é tratado com solenidade ou histeria: em vez disso, um humor tipicamente britânico permeia toda a obra, algo próximo ao que o também britânico Douglas Adams alcançou na saga “O Guia do Mochileiro das Galáxias” (cuja adaptação para o cinema, infelizmente, não lhe faz jus). Entre uma piada e outra sobre a surreal burocracia na terra da Rainha, a série discute temas como destino e propósito.
O demônio Crowley (David Tennant) é encarregado de entregar o Anticristo para a família de um embaixador dos Estados Unidos e garantir que o filho de Satanás seja devidamente “educado” para, após seu aniversário de 11 anos, liderar o fim do mundo. Ciente de que o Armagedom lhe privará da boa vida mundana, Crowley pede que o anjo Aziraphale (Michael Sheen) o “atrapalhe”, ensinando amor e compaixão ao Anticristo, de modo a anular os esforços do demônio. Tudo isso para, após 11 anos de um trabalho – não muito – dedicado, os dois descobrirem que o Anticristo fora extraviado na maternidade.
Em seis episódios, “Good Omens” desenvolve a trama sem nunca negligenciar os personagens. A relação entre Crowley e Aziraphale, que começa na criação do Éden, faz a parceria apresentada no primeiro episódio passar de inusitada para óbvia. Atravessando eventos marcantes da Humanidade como a crucificação de Cristo, o Terror e a Segunda Guerra Mundial, os dois dialogam sobre questões existenciais milenares (“se Deus não queria que os humanos comessem o Fruto Proibido, por que o colocou ao alcance das mãos e não na Lua?”) e a futilidade de seus trabalhos (“seu trabalho está anulando o meu: por que simplesmente não vamos pra casa, já que o resultado vai ser o mesmo?”). Esse questionamento também surge em Anathema (Adria Arjona) e Pulsifer (Jack Whitehall), duas pessoas aparentemente presas ao destino traçado por seus ancestrais.
Vera Hamburger, no livro “Arte Em Cena: A Direção de Arte No Cinema Brasileiro”, define seu trabalho como “a construção de um universo físico visual coerente com a abordagem original” da obra. Os dois mundos antagônicos de “Good Omens”, onde anjos e demônios se reúnem, são visualmente antagônicos: o primeiro é branco, iluminado e asséptico, enquanto o segundo é preto, escuro e imundo. Em diferentes eras, Aziraphale e Crowley se vestem sempre de branco e preto, respectivamente. Os dois são facilmente associados aos seus “lados” na guerra prestes a eclodir. Eles deveriam ser soldados, mas estão mais para funcionários de grandes empresas preocupados em perder o emprego.
A dinâmica entre Aziraphale e Crowley lembra a de Ralph e Sam, o lobo e o cão dos Looney Tunes que, ao fim do expediente, deixam as inimizades de lado e confraternizam como amigos. Num antagonismo de branco X preto, os dois se encontram no cinza. Aziraphale questiona a necessidade de destruir a Terra apenas para saber, entre anjos e demônios, quem prevalecerá. Crowley vai além e em inúmeras oportunidades se queixa de ser um demônio apenas por estar “andando com as pessoas erradas”. A ideia mais interessante da temporada de “Good Omens” é que o Anticristo, filho do próprio Satanás, ao ser criado longe de qualquer influência, se tornou uma criança normal (Sam Taylor Buck), sem que nenhuma “maldade inata” aflorasse nele.
Adam Young, o Anticristo
“Good Omens” advoga pela libertação individual das convenções sociais e do pleno exercício do livre arbítrio, mesmo em cenários extremos em que a própria Realidade esteja em jogo. Como James Mangold resumiu elegantemente no clímax de “Logan“: não seja aquilo que te fizeram.