O Tigre Branco

O Tigre Branco

Do outro lado do galinheiro

Nicholas Correa - 31 de março de 2021

Quando O Tigre Branco estreou, parte da mídia e da crítica especializada logo comparou o filme com o fenômeno cultural que foi Parasita. Ainda que o material do qual o filme se baseia, um livro vencedor do Prêmio Man Booker escrito por Aravind Adiga, tenha sido concebido em 2008, as comparações deste com o filme oscarizado de Bong Joon-Ho não são totalmente sem sentido. De fato, O Tigre Branco parece se integrar a um fenômeno que já engloba uma parte do cinema mainstream e que, desde a vitória de Parasita no Oscar e de Coringa no Festival de Veneza, mostra que vai se intensificar: um cinema mainstream de engajamento social ou, em alguns casos, que dá a impressão de um engajamento social. É claro que o circuito comercial nunca deixou de abordar temas pertinentes ao âmbito sócio-político, mas está cada vez mais claro que o apelo de uma consciência social na temática dos filmes está se transformando e se potencializando. O filme de Ramin Bahrani desponta como mais um exemplo desta onda, mas que também já deixa à mostra algumas das limitações que estão no horizonte dessa tendência.

O foco do filme está na trajetória de ascensão social de Balram Halwai (Adarsh Gourav), que torna-se servente da família mafiosa que explora seu vilarejo natal e que mais tarde se tornará ele mesmo um empreendedor. O destino do personagem é anunciado desde o início, a narrativa se desenrola em flashback pelo relato que um Balram já bem sucedido escreve a um ministro chinês que visita a Índia. Por meio desse relato, o filme parece incorporar a fúria que o personagem mal pode conter na frente de seus patrões. A câmera de Rahmani mal pode se conter dentro de um esquema de posições bem demarcadas e a agilidade da edição nos dá mais uma dimensão dessa energia e dessa voracidade, de querer mostrar mais do que se consegue em poucos planos. Não é que cada momento seja calculado para ser um tour de force, o tom do filme é quase sempre o de um comentário esperto e um tanto quanto sarcástico sobre um regime de imagens histriônico, não muito diferente do Adam McKay de A Grande Aposta.

Rahmani não esconde as falhas e nem os dilemas morais de seu personagem, a identificação que o espectador tem com Balram nunca é em um sentido idealizado ou modelo, nunca é completa. Porém, mesmo que o filme não acolha ou pelo menos não se posicione a respeito das decisões de seu personagem principal (decisões que também não são fáceis), é por meio de sua visão de mundo e de sua indignação mais do que patente que o filme tece seu comentário político. E disso já surgem algumas diferenças que separam O Tigre Branco do filme que mais o comparam. Se o que fica claro em Parasita é que as relações de classe são um jogo de performances e de aparências, em O Tigre Branco elas parecem determinadas por questões do próprio ser. O contexto social da Índia é comparado a um galinheiro no qual as aves observam seus companheiros serem trucidados e que mesmo assim não se revoltam. Quando ele está prestes a sair da sua condição de servente, Balram nota que os animais até se comportam de maneira diferente perto dele, como se eles percebessem “um galo tentando fugir do galinheiro”. O tigre branco titular seria então uma criatura mística, de exceção, que é capaz de sair de uma situação de mediocridade. Balram fala pela sua narração que para sair das “trevas” para a “luz” é preciso se tornar este ser místico.

Em uma cena bastante desconfortável, o personagem de Ashok, um dos patrões de Balram, conversa sobre seu empregado com sua esposa Pinky (Priyanka Chopra) e termina por chamá-lo de “meio limitado” na sua frente. Balram então nos fala pela narração: “Não gostei de como ele falou de mim. ‘Meio limitado’. Mas ele tinha razão. Quando vier para a Índia, conhecerá milhões de homens como eu. Abra nossas cabeças indianas e examine com uma lanterninha. Achará ideias meio formadas, meio corretas, todas misturadas. É com base nelas que vivemos”. Na perspectiva que o filme adota por meio de seu personagem, os dilemas sociais tornam-se dilemas de natureza. Se por um lado o filme almeja comentar a configuração sócio-política da Índia, um contexto que pode ser apenas um entre vários contextos possíveis, por outro ele se detém em aspectos determinantes dos próprios indivíduos. Então os termos para uma possível ascensão estão lançados, eles envolvem assumir uma segunda natureza, incorporar um ser de exceção e agarrar as oportunidades (entre elas uma quantia de dinheiro muito conveniente que Pinky deixou a ele antes da mesma sair da Índia para os Estados Unidos).

A mudança que ocorre no personagem não é no sentido de tornar-se amoral, mas ter consciência de seus próprios atos e também de suas próprias vontades, da raiva internalizada, do desejo de revolta e do desejo de liberdade. É importante frisar que esse despertar do personagem não diz respeito somente à sua autoconsciência, mas também à autoconsciência do filme inteiro. Balram não é somente o protagonista, como narrador do relato ele se faz presente na própria articulação do filme. Em certos momentos ele nos fala olhando para a lente, ele consegue pausar uma cena, dar sugestões do que acontecerá em seguida na narrativa, etc. Temos a impressão de que podemos confiar no relato do personagem justamente pela franqueza e pela desfaçatez com que ele se apresenta. Só que essa confiança pode ser traiçoeira. Boa parte da sua visão de mundo é apresentada no filme sem muita ponderação, como a questão da ascensão social ser no fundo uma ascensão espiritual.

Não que o filme leve isso tudo muito a sério. A autoconsciência, o cinismo, a metáfora do tigre, tudo isso parece ser apenas parte de uma retórica chamativa e incontida. O filme se coloca em um impasse entre a tendência cínica do relato e a denúncia que ele almeja passar. Com isso, O Tigre Branco não vai muito longe em ambas as tendências contidas nele, ele reúne momentos individuais de constatações espertas e outros de comoção. Novamente, muito do que se vê no filme é pouco questionado ou aparece como uma verdade simplesmente, como o momento em que, do nada, o fantasma do pai do protagonista surge diante dele como uma voz sensata. Então é irônico que, em um filme cheio desses momentos, seus instantes mais potentes sejam os que permitem que a cena fale pelos próprios eventos, com as ações evidenciando por si mesmas um subtexto, ainda que pequeno. Vem à memória a cena em que Balram toma o conhecimento de que terá que assumir a responsabilidade por uma ação de seus patrões e tenta conter sua indignação na frente deles. Mas instantes como esse são instantes isolados no meio de afirmações lacônicas e pouco desenvolvidas.

O Tigre Branco coloca em perspectiva um desafio ao cinema narrativo comercial que tem um engajamento social como um atrativo. É o desafio de construir uma proposta estética que vá além de uma comoção ou de uma catarse, além do mero fator atrativo, um projeto que a estilística seja ela mesma uma parte integrante de seu engajamento. O Tigre Branco pode contar com suas constatações rápidas e cáusticas, mas só até um certo ponto e, provavelmente, a maioria de seus espectadores já chegaram nesse ponto antes mesmo de sentar para assisti-lo.

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