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Harry Potter e a Criança Amaldiçoada (Parte Um)

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada (Parte Um)

Gustavo Pereira - 3 de novembro de 2016

Nove anos depois, coloquei as mãos em um livro inédito do universo de Harry Potter. Mais do que isso, uma história canônica do próprio Harry, agora um homem de 37 anos, pai de família e funcionário do Ministério da Magia. Muito material interessante para se abordar, sem dúvida.

É preciso, contudo, fazer uma ressalva. Esta peça de teatro é um trabalho a 6 mãos: o roteiro é “baseado em uma história original de J.K. Rowling, John Tiffany & Jack Thorne – uma nova peça de Jack Thorne”. A dedicatória de Rowling é “a Jack Thorne, que entrou em meu mundo e ali fez coisas lindas”. Então, é justo se perguntar o quanto dela existe neste texto. Não podemos perder de vista que ela está encarregada de redigir os roteiros de cinco filmes do universo de Harry Potter para a Warner e trabalhar com pessoas especializadas nesta mídia pode ter sido muito mais um curso remunerado de roteirista do que propriamente um trabalho. Não me surpreenderia se ela tivesse esquematizado um argumento, Thorne escrito o roteiro em cima disso e Tiffany dirigido, cabendo a ela apenas revisões em cima do texto final, algumas pequenas mudanças para alinhar a história ao cânone e um ou outro diálogo novo.

Isso significa que eu não gostei do que li? Não, mas o nome “J.K. Rowling” estabelece um patamar de expectativa e cobrança de leitores de longa data (li A Pedra Filosofal em 2004!) que não é possível neste livro porque ele não foi exatamente escrito por ela. Quando Alan Dean Foster escreveu Splinter of the Mind’s Eye em 1978, inaugurando o Universo Expandido de Star Wars, criou uma obra autoral que coexiste com os filmes. É oficial (nós, nerds, amamos dizer “canônico”) e reconhecido por George Lucas, mas não tem nenhuma participação criativa dele. Pensemos em Criança Amaldiçoada desta forma, vai nos aliviar o peso de cima dos ombros e permitir que a analisemos pelo que é e não pelo que gostaríamos que ela fosse.

Por exemplo, ninguém em sã consciência gostou de saber mais sobre a Bruxa do Carrinho

Por exemplo, ninguém em sã consciência gostou de saber mais sobre a Bruxa do Carrinho

Sendo um roteiro, a forma de leitura é diferente em relação a um livro tradicional. Não temos amplas descrições de cenários, conflitos internos ou voz de narrador num roteiro. Este material é destinado originalmente aos atores que interpretam os personagens. Acaba sendo uma leitura mais rápida, porque se resume a diálogos e indicações sucintas de expressões corporais e interação com o ambiente. Para quem nunca leu um roteiro, esta citação pode ser esclarecedora:

ATO UM – CENA UM

KING’S CROSS

Uma estação movimentada e lotada de gente tentando ir a algum lugar. Em meio ao tumulto, duas gaiolas grandes sacodem no alto de dois carrinhos de bagagem. Eles são empurrados por dois meninos, TIAGO POTTER e ALVO POTTER. A mãe dos dois, GINA, vem logo atrás. Um homem de 37 anos, HARRY, traz a filha LÍLIAN nos ombros.

ALVO

Pai. Ele continua dizendo aquilo.

HARRY

Tiago, dá um tempo.

O texto é descritivo, objetivo e maleável, de forma que diretor e elenco possam dar suas contribuições ao resultado final. Harry pode ter pedido para Tiago “dar um tempo” com um sorriso no rosto, com desinteresse, estressado etc. Um bom roteiro dá indicações, sem restringir a criatividade do restante da equipe.

Sobre a estrutura, o roteiro se divide em quatro atos: dois na primeira parte, dois na segunda. Como esta crítica foi dividida em duas, hoje falaremos dos atos Um e Dois.

Em Teatro e Cinema (Ópera também), os atos marcam guinadas no enredo, ou seja: após um acontecimento importante o suficiente para mudar os rumos da história, começamos um novo ato, desenvolvendo as consequências deste acontecimento. O primeiro ato é fundamental para construir o ambiente onde a história se passa, apresentar personagens, determinar para onde a história vai e, principalmente, estabelecer a premissa dramática.

Tenho muitos problemas com o Ato Um de Criança Amaldiçoada exatamente por não trabalhar os personagens novos de forma a lhes dar substância que gere empatia do público. O protagonista é Alvo Severo Potter, o filho do meio que tinha medo do Chapéu Seletor coloca-lo na Sonserina no epílogo de Relíquias da Morte. De fato, ele é selecionado para a Sonserina (não é spoiler se acontece na Cena Quatro). Eu gosto disso! Temos um Potter na casa mais famosa por acolher bruxos das trevas, um Potter que se sente sufocado pelo sobrenome e pela fama do pai. Um Potter sem nenhuma habilidade excepcional. Um filho que não se parece em nada com o pai.

"E se me colocarem na Sonserina?" SURPRISE MOTHERFUCKER

“E se me colocarem na Sonserina?” SURPRISE MOTHERFUCKER

O meu problema é que, se você cria uma tensão narrativa (filho que não consegue sair da sombra do pai), você precisa mostrar as consequências disso. Como Alvo lidou com a escolha para a Sonserina? Como os outros alunos da Casa o receberam? Como sua falta de perícia em magia compromete o seu cotidiano? Essas questões não podem ficar implícitas, pois eu preciso me identificar com o personagem, preciso acreditar na premissa narrativa da história. A premissa, para que fique claro, é a explicação sucinta da história. “Menino vira amigo de alienígena” é a premissa de ET, por exemplo.

A premissa de Criança Amaldiçoada é “filho odeia o pai”, mas em momento nenhum fica exatamente claro o porquê. Harry tenta, incontáveis vezes, se aproximar de seu filho. Não sabemos o quanto ser filho de Harry Potter é difícil para Alvo porque os três primeiros anos dele em Hogwarts estão numa “cena de transição”. O próprio roteiro minimiza isto, tornando Alvo o personagem mais babaca de toda a série em menos de 50 páginas. E olha que o Zacharias Smith era um babaca com pedigree.

ALVO

O pobre órfão que foi em frente para salvar a todos nós – assim posso dizer – a espécie dos bruxos. Como somos gratos por seu heroísmo. Devemos nos curvar ou uma leve reverência serve?

HARRY

Alvo, por favor… sabe que eu jamais quis gratidão alguma.

ALVO

Mas nesse exato momento ela está transbordando de mim… Deve ser algum dom que este cobertor mofado me deu…

HARRY

Cobertor mofado?

ALVO

O que pensou que ia acontecer? Nós nos abraçaríamos. Eu diria que sempre o amei. O quê? O quê?

HARRY (enfim perdendo o controle)

Sabe do que mais? Estou farto de ser responsabilizado pela sua infelicidade. Pelo menos você tem um pai. Porque eu não tive, está me ouvindo?

ALVO

E acha que foi azar? Não penso assim.

Ato Um – Cena Sete

Com este background, o “chamado à aventura” aceito por Alvo e seu amigo Scórpio Malfoy (sim, os filhos dos grandes rivais dos tempos de escola são melhores amigos) não faz sentido. Não direi o que é pra não estragar a leitura das pessoas, mas envolve viagem no tempo, o Torneio Tribruxo e “corrigir um dos erros” de Harry. Se você odeia uma pessoa, por que se arriscaria para corrigir um erro dela?

Não gosto da forma como personagens são usados como plot devices para a história. Os filhos de Hermione e Rony (Hugo e Rosa Granger-Weasley. A cara da Hermione exigir que os filhos tivessem o sobrenome dela também. Vai, esquerda!) só servem para mostrar o quanto Alvo está deslocado daquela estrutura familiar. Ted Lupin, afilhado de Harry, sequer é citado. A falta de relevância dada para Rosa no Ato Um tem uma consequência no desenrolar do Ato Dois. Confesso que não me empolguei.

Amo os Granger-Weasley e vou defendê-los, mas sacanearam a Rosa

Amo os Granger-Weasley e vou defendê-los, mas sacanearam a Rosa

Já o Ato Dois é consideravelmente melhor. Feitas as ressalvas de que as bases para a ação não foram bem fundamentadas, você acaba pegando na mão de deus e indo em frente mesmo assim. E é sensível a melhora do ponto de vista narrativo. Viagens no tempo dão a liberdade para o autor modificar a ordem natural das coisas sem medo, pois intimamente já sabemos que nada daquilo será permanente (como eu só li a Parte Um antes de escrever esta resenha, posso ter dado um tiro no pé neste momento, caso alguma mudança seja, de fato, permanente). E o universo de Harry Potter é imenso quando falamos de possibilidades. Casamentos diferentes, escolhas diferentes, mortos que não morreram…

Não darei spoiler, mas nenhum fã de Harry Potter há de duvidar sobre o que de pior uma viagem no tempo pode acarretar. Pois bem, é exatamente com isso que terminamos o Ato Dois e a Parte Um. Uma linha do tempo alternativa onde um grande evento teve um desfecho diferente.

Em alguns momentos, sinto a mão de Rowling escrevendo, principalmente para os personagens clássicos. Quando estamos numa realidade alternativa e ouvimos ecos de suas personalidades originais, pois nem uma mudança de cronologia é capaz de destruir a química entre Rony e Hermione; quando Harry conversa com o quadro de Dumbledore e sabemos que aquela é a lembrança do diretor de Hogwarts falando com seu eterno discípulo; a autocrítica de Draco Malfoy só poderia sair de quem escreve para estes personagens há 25 anos.

Lembrados do conceito abordado nos sete livros de que o amor por um filho torna os pais capazes de qualquer coisa? JK sabe o que faz (e os Malfoy são a melhor coisa até aqui)

Lembrados do conceito abordado nos sete livros de que o amor por um filho torna os pais capazes de qualquer coisa? JK sabe o que faz (e os Malfoy são a melhor coisa até aqui)

A crítica da Parte Dois, junto com a nota, sai na segunda-feira, às 11h.

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