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A Mata Negra

A Mata Negra

Cinema que entende sua gênese e honra sua tradição

Matheus Fiore - 4 de novembro de 2019

Geralmente, a eficiência de um filme trash está diretamente ligada ao compromisso da obra com o absurdo. Filmes assim, não por regra, mas por uma convenção essencial ao gênero, costumeiramente constróem situações absurdas e, mesmo que cientes de que elas já extrapolaram o terror e se tornaram cômicas, acreditam e abraçam essas situações. “A Mata Negra”, de Rodrigo Aragão, é um belo exemplar do cinema trash nacional, justamente por, após criar um cenário denso, sombrio e incômodo, a todo momento apresentar novos elementos absurdos e abraçar todo e cada um deles em prol do gênero.

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“A Mata Negra” começa nos apresentando a Clara (Carol Aragão), uma jovem que vive com seu pai adotivo em uma floresta de ambiente hostil, tanto pelos mistérios e lendas que rondam o lugar, quanto pelo próprio caráter ganancioso e agressivo de sua população. Após encontrar com um moribundo senhor que lhe entrega um saco de ouro e um livro de magia, Clara decide deixar a cidade mas acaba sendo vítima de um golpe. A partir de então, Aragão nos insere em uma sequência de acontecimentos que colocam toda a população da floresta na mira de forças demoníacas, evocadas pelos atos gananciosos e vingativos dos moradores locais.

Aragão brinca com o gênero de forma exemplar, mostrando amplo domínio e carinho sobre cada elemento apresentado. O gore, por exemplo, jamais é explorado de forma simplória ou exacerbada. A violência e o sangue típicos de filmes trash e gore se fazem presentes na medida certa, apenas para potencializar momentos climáticos e até mesmo para puxar o humor. Humor, aliás, é o que não falta em “A Mata Negra”. Aragão não tem vergonha alguma de rir dos estereótipos construídos pelo roteiro e pelo elenco e utilizá-los como chave para mudar o rumo da trama.

Não soa inverossímil, por exemplo, que um sujeito tente ser romântico e “fofo” diante de um mar de violência e uma experiência de quase morte. Na verdade, parece ser a única solução possível no universo construído em “A Mata Negra”. O absurdo está sempre lá e é utilizado como dispositivo narrativo, levando o terror psicológico, que permeia o imaginário dos personagens e daquela pequena sociedade, até o terror físico, com muita brutalidade, e encerrando com a sátira, que comenta o próprio cinema e ressignifica a atmosfera daqueles momentos.

Por trás das brincadeiras de Aragão com o gênero, habita também uma interessante análise da ganância daqueles personagens, e de como a sede por dinheiro e poder os move de forma que faz com que o mundo repita ciclos de violência que parecem inexoráveis. Em dado momento, nos é sugerido até mesmo que todo o mote de Clara será repetido, já no ato final, por um coadjuvante que por ela parece nutrir algum tipo de sentimento. Essa intelectualização sobre a ganância humana e o capitalismo, porém, é deixada apenas como um subtexto, não chegando a se tornar um tema discutido abertamente pelos personagens e nem relevante na conclusão da obra.

O que permite que essa abordagem cômica e violenta funcione é o fato de Aragão embutir inocência em todos os seus personagens. Há uma clara infantilização nas escolhas e atitudes dos humanos, o que não apenas justifica as atuações extremamente caricatas, como também os desumaniza ao ponto de não incomodar quando a narrativa opte por levá-los para caminhos muito mais sombrios do que inicialmente poderíamos esperar – justamente por não se comportarem como se espera de um adulto. Os realizadores pensam em cada detalhe de construção de cenário e atuações para que, mesmo nos momentos mais sombrios, seja praticamente impossível levar a sério os sujeitos que habitam esse universo fílmico.

Por trás de todas essas brincadeiras, Aragão ainda encontra espaço para, como fazem os bons slashers, comentar sobre o próprio cinema. A cena do “nascimento” do Alien de “O Oitavo Passageiro”, por exemplo, é praticamente recriada, não só por acontecimentos, mas na forma de retratar alguns monstros e figuras. Até mesmo o cinema em stop-motion é referenciado em uma cena na qual a sombra de um demônio surge durante um ritual.

Apresentando um universo que é, ao mesmo tempo, divertido e sombrio, “A Mata Negra” é mais um belo exemplar de um estilo de cinema que tem feito sucesso em festivais e que encontra longa tradição no cinema brasileiro, com figuras como o Zé do Caixão. Há terror suficiente para nos deixar imersos em uma atmosfera de apreensão e medo, mas sem esquecer a pitada de comédia que chega para romper totalmente com as cenas e subverter nossa percepção daqueles momentos. “A Mata Negra” nos dá um tipo de cinema que, apesar de muito desvalorizado por grande parte do público, tem seu valor por entender sua gênese e trabalhar em cima dela com carinho e irreverência.

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