A Mesma Parte de um Homem

A Mesma Parte de um Homem

Medo e poder na descontrução das estruturas familiares

Matheus Fiore - 28 de janeiro de 2021

Por mais que seja tentador avaliar A Mesma Parte de um Homem sob o olhar do mundo pós-COVID, seria extremamente injusto com o filme de estréia de Ana Johann tratá-lo assim. É claro que as similaridades estão lá: a família isolada, com pouco contato com a civilização, sobrevivendo quase de forma subsistente e com constante medo do que existe fora de suas terras. Entretanto, Johann parece muito mais interessada em uma análise social mais ampla, desconstruindo a estrutura familiar “tradicional” da nossa civilização.

Uma mulher, sua filha e um homem com amnésia. Os três estão isolados no interior do país e praticamente todos os conflitos e percalços que surgem na trama são originados não por questões externas, mas pelas próprias mazelas mentais. Renata, a chefe da família, parece viver à mercê do medo (da figura masculina e do mundo), e chega a se curvar às vontades de Luís para manter o clima pacifico. Inclusive, em A Mesma Parte de um Homem, o sexo tem o prazer eliminado da equação, o ato existe apenas para alimentar medo e poder.

Se para Renata, o sexo é uma forma de atender aos desejos do companheiro para manter a situação controlada, para Luis, é puramente uma questão de imposição. Assim, além do prazer, qualquer possibilidade de afeto também é limada das cenas. Esse recurso dramático, porém, é tão repetido que sua tensão é eliminada pela insistência; se torna uma saída narrativa fácil para reiterar o clima de medo constante. Ainda assim, é interessante perceber como as cenas de sexo são muitas vezes sucedidas de imagens externas, mostrando a casa e a natureza.

Essa escolha de montagem não só reitera o sexo como um dispositivo para manutenção da estrutura social do universo do filme, como contribui também para remover qualquer possibilidade de vermos o cenário da mata, do interior, como algo puro ou belo. No filme, os espaços são sempre sujos, agressivos, coercivos. É, de certa forma, uma maneira de Johann inverter uma visão romantizada das famílias tradicionais que vivem no interior e ressaltar a parte sombria desse modelo de sociedade de uma forma que não está distante da realidade do país. Essa construção de cenários, inclusive, poderia ser muito melhor aproveitada para potencializar as tensões constantes na família do filme, em vez de repetir tantas vezes o recurso do sexo.

A Mesma Parte de um Homem é um interessante filme sobre o medo e o poder como parte basilar da estrutura familiar. É, porém, uma obra que funciona mais no terreno alegórico e imaginário do que no físico. A tensão é quase sempre imposta pelo que os diálogos e acontecimentos significam, não pelos seus efeitos diretos naquele mundo. Assim, A Mesma Parte de um Homem é um filme cuja força é real, mas um pouco esvaziada e presente apenas pelas ideias que fogem do impacto direto do cinema: a imagem.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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