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Homem Sem Rumo (1955)

Homem Sem Rumo (1955)

Em busca de paz, pronto para a guerra

Matheus Fiore - 13 de janeiro de 2021

Muitas vezes o cinema faroeste é erroneamente resumido como o cinema do tiroteio, dos heróis e dos vilões – definição que não poderia estar mais equivocada. Filmes como O Céu Mandou Alguém, de John Ford, por exemplo, mostram como até os ditos bandidos, as figuras mais vis daquele universo, podem ser capazes de um gesto de bondade. Obras assim são essenciais para mostrar a riqueza do western, para evidenciar como seu cinema, principalmente quando feito por diretores enormes como o próprio Ford, ou Raoul Walsh, ou Monte Hellman, fala sobre a fundação da América, sobre a moral de seus habitantes, sobre a relação do americano com a violência, e muito mais. A realidade é que o cinema faroeste tem como uma de suas principais características a tênue linha que separa o herói do vilão; as singelas diferenças éticas e morais que traçam os limites entre o mocinho e o bandido e, muitas vezes, oblitera essa divisão e torna tudo mais cinzento. Homem Sem Rumo, de King Vidor, é um dos filmes que vi que melhor retrata essa separação.

No filme, Dempsey (o lendário Kirk Douglas) e Texas (William Campbell) se conhecem em um trem a caminho de uma cidade. Dempsey, um sujeito mais velho, mais cascudo e vivido, acaba criando uma relação de mentor e aprendiz com o jovem Texas, e assim começa uma amizade que se estenderá conforme a dupla chega à nova cidade e começa uma nova vida. Como em quase todo faroeste, porém, os novatos não são muito bem recebidos pelos moradores locais. As brigas em bares, as disputas por território e paixões e demais desavenças surgem ao passo que Dempsey e Texas lidam de formas bem diferentes com elas – e é nessa dinâmica que Vidor encontra o coração de sua história.

Homem Sem Rumo mostra sempre Demspey e Texas tendo seus limites testados. As constantes desavenças com os moradores locais despertam reações diferentes dos personagens. Enquanto Texas adota a ideia do “olho por olho, dente por dente”, Dempsey tenta ser o lado sábio, pacificar os conflitos e medir a violência para a dose necessária. O que vemos, então, é, além da diferença de trato dada a experiência de cada um, um protagonista que tenta lutar contra a natureza de uma sociedade formada na violência e para a violência. Dempsey percebe a brutalidade inerente ao mundo que o cerca e tenta de toda forma controlar os impulsos (seus e de seus amigos) a fim de evitar que qualquer problema termine necessariamente em um duelo. King Vidor, claro, consegue aproveitar as nuances da atuação de Douglas de forma primorosa, principalmente por movimentar lentamente sua câmera nos momentos em que Dempsey está prestes a explodir, evidenciando a fragilidade da situação.

De certa forma, Homem Sem Rumo vai até mesmo na contramão do que o público da época esperava de um faroeste, já que muitos momentos de tensão que comumente seriam sucedidos por épicos duelos de revolver acabam por não tendo essa conclusão. Não são raras, por exemplo, as cenas de Dempsey sendo agredido (seja por seu “aprendiz” impulsivo ou por outros personagens) e rejeitando a violência, mesmo que sinta o impulso. Douglas domina seu personagem (como é de se esperar de um astro desse porte) e consegue dosar essa brutalidade oculta do personagem com o arrependimento instantâneo e a sabedoria que o fazem manter-se na linha – e a tensão é criada pelo mencionado e fantástico controle de câmera de Vidor.

A conclusão de Dempsey lembra um pouco o fechamento de Os Brutos Também Amam, de George Stevens, lançado dois anos antes. Os protagonistas de ambos os filmes percebem a impossibilidade de alterar esse cenário e partem para uma nova aventura. O que os diferencia é o trajeto. Se Os Brutos Também Amam é concluído de forma bastante melancólica, Homem Sem Rumo é um pouco mais esperançoso justamente pelo caminho entre a apresentação de Dempsey até sua despedida. Porque Vidor, assim como Walsh fez em boa parte de seus filmes, mostra-se interessado em nos apresentar ao lado mais humano de seu protagonista.

O anti-herói de Kirk Douglas gosta de beber, dançar, cantar, tocar um banjo no bar com os amigos. São esses momentos que mostram tudo que Dempsey sonha ser e não consegue; tudo que o personagem deseja viver e não encontra o lugar ideal para isso. Não por acaso, é nesses momentos em que Vidor filma as cenas mais vívidas e cheias de movimento da obra. É o personagem que vive a procura do lugar onde possa chegar com sua inseparável sela e tomar uma garrafa de uísque com os amigos e que não precise sacar uma arma – mesmo que esteja, por tudo que já viveu, preparado para isso, como a cena em que o caubói usa o banjo como arma nos mostra. É o personagem que está acostumado a viver na violência, mas que sempre procura fugir desse ciclo.

O plano de despedida não poderia sintetizar melhor a ideia de Vidor. Um caubói partindo para novas aventuras em outras terras, além das cercas que separam o espectador e todo o cosmo cinematográfico apresentado de Dempsey e seu cavalo. Porque nós não conseguimos escapar desse mundo que nos cerca e talvez nem Dempsey, mas ele não deixará de tentar. E assim segue, cavalgando enquanto o vemos desaparecer em um horizonte sem fim.

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