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Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo

Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo

Longa chileno se confunde entre os próprios registros

João Pedro Faro - 17 de fevereiro de 2021

Parecem existir duas realizações diferentes dentro de Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo, longa chileno de Camila José Donoso. A primeira, digital, está dentro de um estandarte médio da pequena ficção sulamericana carregada de trauma pós-ditatorial, filmado dentro de um escopo largo que não justifica suas pontas. Já a segunda, traz uma mescla de gravações em filmadoras de mão, tanto em película quanto em vídeo, para filmar os exatos mesmos personagens e locais que a realização em digital. Ambas buscam alguma união para contar uma mesma narrativa, sem sucesso na empreitada.

Acompanhando uma idosa de gênio forte, morando no interior após cometer um nebuloso delito incendiário, Nona não consegue transpor o radicalismo de sua protagonista. Mesmo estando em tela por quase todo o tempo, não ultrapassa as barreiras que a distanciação de sua desconversa entre registros aflige no projeto. Na primeira vez em que ocorre o corte de uma filmagem em película, livre em suas formações e deformações, para o escopo do filme em digital, a interrupção surge genuína, curiosa. Já na segunda ou terceira vez, o processo só começa a desgastar, pois não há fruição suficiente em nenhum dos dois espectros que impeça a mescla de tornar-se enfadonha.

É verídico que os registros em vídeo e em película, com suas diversas entregas ao erro e à desconjuntura de suas imagens, auxilia a tornar interessante até o menos habilidoso dos cineastas. Não seria justo colocar o trabalho de Donoso nesse caso, até porque o que garante o movimento para algumas sequências é a capacidade da diretora em lidar com o espaço de criação do escopo reduzido nos momentos em película. Ao acompanhar o trabalho dos bombeiros nos arredores de sua protagonista, que vive em uma área tomada por uma endemia de incêndios, Donoso, ao usar a película, apresenta plena capacidade de composição em breves momentos de poder. Há, por exemplo, um plano das mãos dos bombeiros sobre seus capacetes amarelos, à caminho do trabalho, que reluz as superfícies à beira do desfoque e granula a escuridão do fundo, em contraste com a cor forte dos objetos centrais. Tipo de aproveitamento do meio de captação que só é possível dentro do conhecimento das causas e efeitos que seu processo deve ter para construir alguma ideia. O problema, que se torna regra ao longo do filme, é uma incapacidade de fazer com que as imagens montem um projeto integrado.

Logo, os momentos em película e vídeo são cortados por uma narrativa “oficialesca” que sugere querer justificar os momentos de fruição inventiva. Ou seja, após construir algo de valor fílmico próprio, em uma narrativa flutuante e obtusa com as filmadoras de mão, corta-se para o filme “de verdade”, composto por uma decupagem desinteressada em fazer valer o tempo que rouba de composições muito mais interessantes (e que estavam lá, na tela, há apenas uns instantes atrás). Acaba por proporcionar uma anulação mútua. As sequências em digital surgem como uma espécie de tentativa de amarrar os registros analógicos, sem que os registros analógicos tenham qualquer necessidade de seres justificados dessa forma.

O estranho é que a narrativa em digital, decupada, de roteiro mais claro e imagens mais nítidas, não filma lugares ou pessoas diferentes da narrativa que escorre por meios mais livres. Por isso ela parece tão intrusa, por não ter nada de diferente para mostrar, nada para ir “além” das imagens analógicas a ponto de interrompe-las. A sua única diferença, em termos objetivos, é a determinação em ser asséptica, imemorável. Não há momento fervente de disposição do analógico que sobreviva à interrupção de uma obra de imagens neutras e mornas, insistente em existir mesmo que prove, a cada aparição, sua falta de propósito.

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