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O Barco

O Barco

O mar como elemento que enfeitiça, mesmo que nunca seja decifrado

Matheus Fiore - 21 de outubro de 2020

O primeiro filme de Glauber Rocha talvez seja, até hoje, meu favorito do lendário diretor. Barravento é capaz de transformar em narrativa a raíz da cultura africana no povo brasileiro. É um filme que dialoga com muitos dos mitos culturais e históricos que sedimentaram o país. Falo de Barravento justamente porque O Barco, filme de Petrus Cariry, me lembrou bastante da estreia de Glauber. Claro que seria uma injustiça com Petrus comparar o filme do promissor cineasta com qualquer obra do já canonizado diretor baiano. Mas é inevitável fazer algumas conexões dadas as ambientações de ambos os filmes e, principalmente, suas relações com o místico.

O Barco se passa inteiramente em uma praia, onde uma família vive uma vida simples e monótona até a chegada de Ana e seu barco. Aos poucos, o realismo da rotina se choca com a chegada do místico. As cenas dos moradores da região realizando afazeres simples como limpar um peixe, costurar, arrumar uma casa, são contrastados com algo extrafísico que não se manifesta imageticamente, mas verbalmente. O Barco sempre estabelece sua mística e sua narrativa a partir da palavra, da construção de uma fábula a partir de contos, relatos, narrações.

É pelas narrações, portanto, que Petrus estabelece o piso para construir quaisquer alegorias e ambientações do filme. Mas não em um sentido de literalidade, no qual o filme é subjugado ou dependente do roteiro. É, na verdade, ao contrário: O Barco é um filme essencialmente visual – como toda obra audiovisual –, e utiliza essa construção de mitologia pela palavra como mecanismo para evocar o sobrenatural. É, portanto, o natural, o mundano, o humano, como ponte para o mágico. Não vemos essa magia refletir em acontecimentos fantásticos ou fantasmagóricos, mas sim no condicionamento do comportamento de seus personagens. O Barco, portanto, chega ao extraordinário pela sugestão, algo dificílimo de se alcançar visualmente com tamanha competência, já que é um recurso tão simples – e não necessariamente ruim – fazer o mesmo utilizando elementos fantásticos na narrativa.

Isso só ocorre porque todos os elementos cinematográficos são utilizados de forma precisa para que o extranatural se manifeste no filme. Da trilha à montagem dos planos, tudo constrói uma relação de medo do desconhecido, de como o mar – e o que ele traz ao longo do filme – incita apreensão nos personagens. Cariry consegue estabelecer nossa curiosidade por um mundo que não desbrava, justamente para nos tornar cientes da riqueza que habita aquele espaço e que nós, seja por desinteresse da narrativa ou por incapacidade de compreensão, não conheceremos.

E assim, tornando o místico também indecifrável, que O Barco se apresenta como uma obra que contempla a complexidade do mundo apresentado, sem nunca ter pressa ou até mesmo interesse em esmiuçar cada uma de suas camadas. É um filme que constrói certo magnetismo na relação de seus personagens com o mar, de forma que eles não conseguem se afastar dele, mas também não possuem as ferramentas intelectuais de explorá-lo. Em suma, um filme que instiga justamente por compreender a relação de seus personagens com seu mundo, sem a necessidade de tornar compreensível tudo que nos é apresentado; que torna o sobrenatural uma presença que ronda aquela sociedade, sem nunca manifestar-se diretamente, mas sem deixar que isso a impeça de nortear o consciente e o inconsciente de cada um daqueles indivíduos.

 

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