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O Estranho que Nós Amamos

O Estranho que Nós Amamos

Matheus Fiore - 8 de agosto de 2017

Mesmo que seja injusto com uma obra julgá-la fora do contexto histórico, é normal que parte do público e até do meio profissional se incomode quando, com o passar do tempo, nota a representação de coisas socialmente rejeitadas no presente. Um bom exemplo disso é alguns dos faroestes da era clássica, em que a mulher muitas vezes era vista como a mocinha inocente a ser resgatada pelo caubói. É normal – e sintomático de nosso tempo – então que, em um mundo mais globalizado e que busque igualdade, alguns filmes ganhem “revisões” trazendo pontos de vista “modernizados” de histórias já contadas.

O Estranho Que Nós Amamos se encaixa nesse caso. Sendo originalmente um livro, a história do soldado yankee ferido que acaba numa escola ocupada por mulheres de distintas idades que passam a desejá-lo já se tornou um longa-metragem nas mãos de Don Siegel. O filme propôs-se a explorar a manifestação do desejo na mulher sob a ótica masculina, o que resultou em um filme cheio de predicados técnicos mas que, além de pouco representar os sentimentos femininos, também trazia traços sexistas.

Coube a Sofia Coppola, então, dar uma nova visão à obra literária. Nas mãos da talentosa cineasta, The Beguiled (nome original) ganha agora um olhar feminino de um conto sobre desejos femininos. A diferença é marcada desde os primeiros planos do filme: inicialmente, já notamos um enorme contraste entre as mulheres e o mundo “externo”, quando a fotografia aproveita as belas e grandiosas árvores tortas do bosque para criar um cenário ameaçador que deixa as moças totalmente deslocadas. Com um ambiente quase sempre escurecido, a escolha de manter o figurino das personagens com cores sempre suaves e limpas também as mostra como figuras puras no meio de um mundo impuro.

Coppola também utiliza lentos travellings que aproximam a câmera da casa logo quando o yankee John McComb (Colin Farrell) é resgatado. Em tais travellings, o foco é o portão de entrada da casa, que, por ser constituído de barras de ferro, emula uma prisão, a qual, em primeira análise, poderia ser a do homem, agora à mercê das mulheres lideradas por Martha (Nicole Kidman). Porém, aos poucos, O Estranho Que Nós Amamos ressignifica essa imagem, mostrando que, na verdade, John é apenas um veículo para a manifestação dos desejos femininos de todas as personagens enclausuradas na enorme casa.

Diferente da versão de 1971, quando o desejo das mulheres se resumia a manifestações sexuais representadas por imagens de devaneios, Coppola, como mulher, escolhe uma abordagem muito mais interessante e sugestiva. Não vemos o que as mulheres pensam – sequer ouvimos seus pensamentos -, temos acesso apenas às expressões faciais resultantes de suas interações com a figura masculina, o que é mais fiel como retratação da psique feminina se considerarmos que, segundo o senso comum, a mulher não tem um apego ao conteúdo visual como os homens. Por isso, a narrativa ganha uma abordagem menos onírica e mais coesa do que na versão de Don Siegel. Coppola aposta na força da troca de olhares  e das expressões faciais, deixando subjetividades imaginativas a cargo da imaginação do espectador.

A fotografia de Philippe Le Sourd também é essencial para a maneira como Coppola desenvolve o jogo de sedução e medo que permeia o ambiente. Com o auxílio de muita luz natural, repetidas vezes os personagens abrem e fecham cortinas e janelas, o que os faz ir da luz para a sombra constantemente, algo que ilustra de forma fantástica as diferentes atmosferas dos personagens. A projeção da luz do Sol sobre a casa também sugere a presença divina que protege as personagens, o que ressalta ainda mais o conflito entre dois mundos diferentes (a América da Guerra Civil e a bolha da casa das mulheres), já que a obra também tem como intenção mostrar como o mundo feminino imaculado e controlado pela religião se manteve alheio à violência da Guerra de Secessão – e ressaltar o sujo versus o puro e os planos detalhe nas mãos imundas de John é fundamental para mostrar como ele é um invasor no ambiente limpo de Martha e suas “meninas”.

Infelizmente, pequenos deslizes impedem que O Estranho Que Nós Amamos se torne uma obra-prima. Com um ritmo lento e controlado por toda a projeção, o filme apresenta, ao fim do seu segundo ato, uma sucessão de cenas rápidas e pouco desenvolvidas, que tornam abrupta a mudança de tom na parte final. Há momentos em que planos são traçados, e, de forma rude, o longa corta diretamente para o momento posterior à sua execução, impedindo que criemos quaisquer expectativas ou frustrações com a situação criada. A ausência de um elo entre John e o público também é sentida. Se no filme de Siegel a personagem da escrava possibilitava maiores debates sociais, aqui a personagem mais próxima de John é Edwina (Kirsten Dunst), uma professora insatisfeita com sua vida, o que, apesar de servir como estopim para outros conflitos, limita o filme tematicamente, por ela ser apenas mais uma moça branca e loira.

Sobre as personagens, Coppola é muito feliz ao mostrar as diferenças nas relações das distintas faixas etárias com a figura masculina. Enquanto pelas mais jovens John é visto de forma paternal e heroica – resultado da criação falocêntrico-cristã imposta pela sociedade da época -, o yankee desperta o desejo sexual das adolescentes e adultas e é visto quase como uma ferramenta de autodescoberta por Alicia (Elle Fanning) ou de escapismo por Edwina (Dunst). Já com Martha (Kidman), John é uma ameaça a seus dogmas e estilo de vida, já que inicialmente representa seu medo do desconhecido, mas, aos poucos, desconstrói-se como um gatilho para seus sentimentos reprimidos. Tais relações funcionam tanto como um retrato de um período extremamente sexista quanto como um estudo da psique humana, retratando diferentes reações a um mesmo estímulo, as quais se diferenciam apenas pela bagagem de exposição à alienação machista da época.

O Estranho Que Nós Amamos releva-se uma releitura moderna e arrojada, que descarta os delírios subjetivos de Siegel e dá lugar a uma trama mais focada no estudo feminino de Coppola. Em uma análise mais desconectada do tema principal, o filme ainda funciona como um retrato de arquétipos presos e reprimidos, tanto física – John se vê obrigado a participar da guerra e, posteriormente, encontra-se preso à casa de Martha – quanto mentalmente – Martha e as outras moças estão praticamente domesticadas pelo contexto político-social da época -, o que torna a obra ainda mais rica tematicamente.

 

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