Os Banshees de Inisherin

Os Banshees de Inisherin

A fala honesta e o grito das Banshees

Nicholas Correa - 4 de março de 2023

Até agora os dois filmes mais debatidos de Martin McDonagh, Na Mira do Chefe e mais recentemente Três Anúncios Para um Crime, possuem uma forte conotação moralista. O traço definidor da narrativa desses filmes são as circunstâncias em que o norte moral de seus personagens se torna ambíguo: em Na Mira do Chefe vemos um impasse no íntimo do personagem do Colin Farrell e em Três Anúncios Para um Crime vemos a desestruturação de uma comunidade, com os dramas individuais de seus membros transbordando para a esfera pública e vice-versa. Ainda focado nessas relações entre o drama intimista e a vida em comunidade, Os Banshees de Inisherin oferece um contraste importante em relação ao último filme de McDonagh. Em Três Anúncios Para um Crime havia uma possibilidade de redenção para seus personagens, mas o tom deste novo trabalho é fundamentalmente pessimista. Além da metáfora para a guerra civil irlandesa, o conflito central de Os Banshees de Inisherin, de um amigo que rompe a amizade com outro do dia para a noite, expõe um olhar cético em relação à natureza das relações públicas.

Os personagens se encontram apartados do resto da Irlanda e da guerra de 1923 em uma ilha pacata. É um mundo à parte, seus habitantes prezam pela cordialidade e a vida para a maioria deles segue aparentemente simples. É importante notar também o tom religioso com o qual somos apresentados à comunidade de Inisherin, a imagem que abre o filme mostra um olhar que desce das nuvens para observar esses personagens de perto. Essa noção de uma perspectiva que se abaixa, de rebaixamento, introduz a vulgaridade e pacatez da ilha. Somos introduzidos aos dois personagens principais, Colm (Brendan Gleeson) e Pádraic (Colin Farrell), depois que o primeiro optou por terminar a amizade. O olhar do filme chega atrasado, não temos noção de como era a relação entre os dois, somos deixados a lidar com os destroços e com a subsequente deterioração das demais relações na ilha. É natural que os motivos que Colm dá para o amigo para o fim da amizade (Pádraic seria “chato”) soem demasiadamente simplistas e incompreensíveis. Mas com o tempo torna-se evidente que a dinâmica social daquela ilha e da vida simples das pessoas nela não é tão transparente assim. Colm, ao decidir por investir em um propósito mais pessoal e mais ambicioso, sua dedicação à música, paga o preço de sua decisão rompendo com a pacatez e o verniz de cordialidade da ilha. É um personagem que, por bem ou por mal, passa a ser mais sincero e sem rodeios.

A trajetória de McDonagh pelo teatro pode explicar a sua preferência não só por uma dinâmica de grupo pequena, mas principalmente o cuidado com seus diálogos. O caminho da fala, assim como a sua interrupção por parte de Colm, são o ponto central do conflito e o motor das tensões dramáticas principais. Várias das ações de suma importância narrativa são motivadas pelo silêncio ou pela irrupção da fala. A ameaça de Colm de cortar seus dedos caso Pádraic volte a falar com ele pode ser vista como o exemplo mor dessa dinâmica. Se antes a condição de paz podia se dar pelo diálogo, sincero ou não, agora ela só pode se dar no silêncio, na distância. É com o absurdo dessa sinceridade dentro do ordenamento cotidiano que McDonagh demonstra sua habilidade com o texto e seu senso de humor trágico.

Com a incompreensão de Pádraic e do restante do seu círculo social com a atitude de Colm, a teia de relações da comunidade se degrada numa série de momentos de indiscrição, de intimidade alheia exposta, de opiniões espinhosas vindo à tona e de traições de confiança. Essas intrigas envolvem não só os dois personagens principais, mas também Siobhán (Kerry Condon), irmã de Pádraic de personalidade forte e um tanto alienada do restante da ilha. Nem figuras de autoridade como o policial e o padre local escapam dessa deterioração, com suas credenciais de moralidade postas em questão o tempo todo. Daí o pessimismo de McDonagh. A civilidade é mantida pela dissimulação, pela hipocrisia, e a alternativa mais evidente no horizonte é o conflito aberto, a guerra tão aludida. 

É a alternativa mais evidente, mas talvez não a única, porque dentre todas as figuras da vila, o personagem do rapaz Dominic (Barry Keoghan) é o mais atípico. Desprezado por quase todos como um idiota, incluindo o seu próprio pai, Dominic dispensa a polidez costumeira da ilha e se comporta de maneira absurdamente vulgar. Mas não que ele se importasse com sua reputação e também não tivesse muitas ambições. Até mesmo quando se frustra amorosamente em um determinado momento ele ainda consegue dizer com uma certa casualidade: “Bom, lá se vai esse sonho”. O preço que paga é a renúncia de seu orgulho e uma certa solidão, talvez um preço alto demais para os outros, mas principalmente para Pádraic. O que é típico dos conflitos do filme é uma certa mesquinhez que pode se confundir com a ambição de seus personagens, uma vontade de superar a pacatez e também de conferir um sentido pessoal à vida, um sentido além da falsa cordialidade ou do contato cotidiano com os animais.

Os personagens transitam na ilha como figuras solitárias na vastidão da paisagem. O contraste da vulgaridade que se acompanha em Inisherin com o tom religioso e de santidade é ainda mais forte com o olhar para as paisagens. McDonagh e seu diretor de fotografia Ben Davis conferem uma beleza e um aspecto quase místico ao ambiente da ilha, muitas vezes também pontuada na faixa sonora por um coro religioso. Os habitantes de Inisherin são oprimidos pelo horizonte vasto e tentam se conectar à santidade e ao sublime, transcender a condição mundana, com consequências desastrosas. No meio desse horizonte, ocasionalmente, as bombas da guerra civil irrompem ao longe como profanações. O pessimismo sobre qualquer resolução pacífica também está presente na alusão às Banshees (destaca-se a presença dúbia e fantasmagórica de Sheila Flitton como a Sra. McCormick), as figuras místicas da mitologia celta que anunciariam a morte e cujos gritos também poderiam ser ouvidos a longas distâncias. Não há salvação, os personagens estão presos à terra junto dos cães e jumentos.

É nesse impasse entre a falsa cordialidade e a guerra que McDonagh ainda consegue transmitir uma afeição aos seus personagens no que eles têm de verdadeiro nos sentimentos, na necessidade de conexão e nas suas buscas por sentido. Mas é uma afeição que se dá na honestidade brutal, sem nenhuma pretensão de pureza ou redenção.

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