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Sibéria

Sibéria

O inferno que permeia a mente do artista e da sua criação

Matheus Fiore - 24 de outubro de 2020

Nos últimos anos, Abel Ferrara tem direcionado sua carreira a questões internas. Se filmes como O Rei de Nova York Gangues do Gueto falavam muito mais sobre Nova York em si do que sobre os personagens, Tommaso, já é praticamente uma semi-autiobiografia do diretor americano. Sibéria – que assim como Tommaso, também é protagonizado por Willem Dafoe – dá continuidade a essa fase de forma tão direta que, de certa forma, faz parecer que o longa é uma continuação direta da obra de 2019.

Há, porém, diferenças. Tommaso lida com as questões internas de seu protagonista de forma curiosa: ao passo que o protagonista que dá nome ao filme centraliza todas as ideias de Ferrara, principalmente em virtude de uma atuação que tem seus movimentos corporais enfatizados, ele também verbaliza muito mais essas questões por meio da narração em off. Sibéria faz diferente, retorna a um Ferrara mais típico do Rei de Nova York e joga para toda a mise-en-scene as questões centrais da trama.

Sibéria é um filme que se comunica mais pelos cenários e sons que rondam Clint (Dafoe) do que pelas reflexões do personagem em si. Tirando a narração que abre a projeção, quase tudo em Sibéria é expresso pela imagem. É, de certa forma, um filme no qual a ambientação projeta a mente do protagonista, que vive isolado na Sibéria e vive uma vida reclusa e simples. Lá, Clint vê seus fantasmas do passado, traumas e fracassos o perseguirem, tornando Sibéria uma viagem ao inconsciente do próprio diretor que funciona como um pesadelo desordenado.

Para transformar isso em filme, Ferrara brinca bastante com o experimentalismo. Dos cortes que promovem saltos de passagens que nem sempre se completam diretamente à projeções de fotografias que surgem com tamanha espontaneidade que fazem parecer que estamos de fato visitando a mente do cineasta a partir de seu próprio inconsciente. Essa ambiência de pesadelo só é possível também graças ao esforço estético para tornar todos os cenários lugares inóspitos, estéreis, desesperançosos, sempre consumidos pelas sombras e pelo frio. Ao mesmo tempo que Clint está em uma viagem às profundezas de sua própria alma, o personagem parece não conseguir chegar a lugar nenhum e estar sempre preso a seus pecados.

Sibéria, então, apresenta-se como uma obra que não propõe exatamente reflexões ou conclusões, bem como não traz novas perguntas. É apenas uma abertura para o melhor entendimento dos males que perseguem a mente de seu autor. Um filme que une a impotência de seu protagonista diante do destino que se avizinha a um cenário que parece há muito ter se estabelecido de forma irredutível ao seu redor. Clint é um homem que, depois de muito tempo, conseguiu visitar o lado mais obscuro de sua existência, mas não a tempo de poder corrigir seus erros ou trilhar novos caminhos. É uma apocalíptica constatação dos fracassos, medos e anseios que assombrarão o personagem (e seu criador) até o fim de sua existência.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 44ª Mostra de São Paulo. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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