Tenet

Tenet

Tiros no escuro

Nicholas Correa - 22 de dezembro de 2020

Muito se fala de Christopher Nolan como um cineasta fundamentalmente tecnicista, cineasta artífice cujo interesse está no funcionamento mecânico de seus elementos em detrimento do fator humano. Então é até curioso que Tenet, mesmo que parta de uma série de filmes de pretensões metalinguísticas e mesmo que não fuja de uma linha mecanicista, é o seu filme mais autoconsciente até agora. Depois de conduzir vários filmes de contextualização metafísica – fato e memória, mágica e ilusionismo, o real e o sonho – Nolan parece ter atingido um apogeu. Dunkirk, mesmo contando com vários dos vícios estruturais de seus filmes pregressos, já parecia anunciar uma reformulação. Como os soldados de Dunkirk, os personagens de Tenet ainda tem seus movimentos ultra calculados e se movimentam no filme como peças de um jogo onde tudo já está pré-determinado. O que é chave aqui, é que essa pré-determinação, pela primeira vez na carreira de seu cineasta, se faz presente como um elemento dramático assumido frontalmente.

Dentro de uma máquina, tudo se transforma em instrumentos para a execução do programa. Então, espera-se que ao filmar um mundo fraturado, onde a entropia de certos objetos é invertida, Nolan se preocupe mais em usar a fratura como premissa para executar aquele que é o seu programa favorito: a narrativa clássica, luta do bem contra o mal, mocinho contra bandido, etc. Mesmo com toda a pirotecnia estrutural, em Tenet a convenção sempre está presente (desestruturada, mas presente). A entropia reversa então, não se torna um mote de reflexão para além das premissas do filme, mas uma ferramenta sofisticada para que o mocinho interpretado por John David Washington lute com o vilão megalomaníaco em um modelo narrativo exausto. Contudo, como o desenrolar ultra complexificado de Tenet demonstra, a exaustão pode até ter seu interesse. É ao esgarçar modelos já dados que Nolan finalmente põe o sentido de todo o seu cinema em questão e abre brecha para que um mínimo de inquietação e ambiguidade floresça.

Talvez o vício que mais chame atenção no cinema pregresso de Nolan é a sua insistência em não deixar nada a lacunar, cobrir todo o traço de dúvida de seus filmes com o que hoje convencionou-se em chamar de “diálogo expositivo”. Tenet não chega a abrir mão da verborragia, mas é ironicamente pelo esforço de deixar tudo às claras que o autor consegue, com bastante eficiência, alienar o espectador do que está acontecendo diante dele. Em um cinema de ação ultra codificada, o que mais sobressai é justamente o hermetismo desses códigos. Se Nolan até então complexificava o drama para suprir sua falta de profundidade, a sua dificuldade com o fator humano, Tenet parece se complexificar para acabar com todo o sentido possível. O devir possível de Tenet é o devir de um esvaziamento progressivo. O personagem de John David Washington sempre está se sujeitando a enganos, manipulações análogas ao que o seu diretor fazia (e ainda faz) com todos seus personagens, e mesmo assim se vê em uma situação onde ele precisa dar o voto de confiança a todo mundo. O momento em que o personagem de Robert Pattinson desiste de dar explicações e pede para o protagonista “tentar dormir um pouco” desponta quase como uma gag de autor. Cada ação do protagonista é um tiro no escuro e nosso objetivo torna-se fazer sentido de seus movimentos.

Mesmo não tendo o melhor metteur en scène à disposição – a imagem em Christopher Nolan continua sendo a maior das nulidades, afinal esse é um filme ensimesmado – o que parece de interesse para Tenet não poderia ser mais elementar para o cinema de ação: a loucura dos corpos e espaços em franca desintegração. Em função dessa falta de sentido aparente, os movimentos do filme são motivados por nada além deles mesmos, o que faz deles ainda mais inquietantes. As cenas de luta com um corpo de movimento revertido e de perseguição de carros em movimentos opostos são o ápice dessa insanidade logística e que demonstram um real esforço de coreografia. É verdade que o formalismo de Nolan continua nos mesmos moldes de sempre, sempre em prol da virtuose, mas aqui levado ao esgarçamento que constitui o escopo de sentido do filme (ou da falta dela).

Que não se engane, Tenet não é um projeto tão iconoclasta quanto parece, sua ambição no fundo ainda é bastante clássica. Tomando o jogo de entropia, o filme se dá o luxo de navegar por várias temporalidades pura e simplesmente: não basta ver um prédio se refazendo após uma explosão, o filme mostra o prédio se refazendo e explodindo ao embaralhar os pontos de vista. Porque acima de todos esses tempos, todas as ordens de ação e reação, está o desenrolar do próprio filme. Nisso, tanto o diretor quanto o vilão do filme, interpretado por Kenneth Branagh, têm um ponto em comum: o desejo de estar acima de todas as causas e efeitos ou de qualquer sentido possível, tornar-se um deus para citar o personagem de Branagh. O filme, como uma nova iteração do clássico (e aqui podemos falar de cinema de ação, espionagem ou ficção científica), ainda almeja um poder sobre o futuro, ele é um monumento à eternidade, o prolongamento indefinido de um modelo narrativo. Se Nolan pudesse realmente abrir uma fenda no espaço-tempo e colocar um filme nessa fenda, ele o faria. Mas como o seu suporte técnico só o permite fazer com que o filme seja exibido em apenas uma direção no tempo, ir de um início a um fim, não importando quantas vezes esse percurso seja fraturado, ele então faz o que pode com a ação inconsciente de seus personagens, ações que precedem o conhecimento daquilo que as motiva.

É irônico que dentro de um esquema hiper-calculado, os prazeres possíveis em Tenet surgem quase que por contingência, por desorientação vinda de um excesso de controle. Curioso como a cena inicial do concerto em Kiev funciona como metáfora (talvez mais um elemento de prazer involuntário) para essa relação do cineasta com a dicotomia de mecânica e humanidade. A plateia é feita de refém, sedada e alienada do que acontece com ela, enquanto os sujeitos que ficam conscientes nem parecem se importar muito com os corpos desmaiados, chegando a andar por cima de alguns deles. Tudo isso vem para reforçar a ideia de que o cinema de Nolan sempre foi no fundo sobre transformar sujeitos em objetos, um cinema que é, no seu limite, positivista. Agora, não mais fingindo profundidade emocional, ou intelectual, por meio do artifício, o artífice volta-se para a própria logística de seus meios. Cineasta profundamente analítico, no sentido de que ele não se preocupa com nada além de seus próprios termos e proposições, Nolan finalmente pode se concentrar nos problemas que realmente o interessam, os problemas mecânicos do seu relógio.

O fator de interesse aqui é que essa frieza sepulcral e desumanizada (algo que em Dunkirk tomava uma forma abjeta como o senso de dever na moral da guerra), ainda que paute o filme todo, finalmente é posta em questão. De fato, pode-se dizer que é por escancarar um pesadelo lógico, levando seus desdobramentos a um ponto insustentável, quase à irracionalidade, que Nolan parece apontar para uma falta de sentido da ação. Ação estranha, senão infundada e desproposital, é a de Tenet, filme que no fundo parece saber que um cinema posto contra a entropia, ou que quisesse estar acima dela, teria que ser logicamente um cinema de inação. A falta de norte que o personagem de John David Washington sente ao ser forçado a atirar no escuro, ao se ver instrumentalizado e feito objeto, tanto pelas circunstâncias quanto pelo diretor, é talvez o maior indicativo de que muito dessa ética em que ele se insere já não tem sentido. Seja uma questão de paradoxos ou de pura e simples falácia, o que importa é que essa é a melhor e a mais autoconsciente aproximação de Nolan de um ideal artístico que estava latente desde Amnésia: fazer um filme pelo simples prazer de fazer um. Afinal, um cinema analítico não precisa de outra justificativa além dele mesmo.

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