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Um diálogo entre Cambaúba e Cervejas no Escuro

Um diálogo entre Cambaúba e Cervejas no Escuro

Do Cinema para o Mundo e do Mundo para o Cinema

Michel Gutwilen - 8 de fevereiro de 2023

As interseções por zonas cinzentas entre o fazer Cinema, a investigação da História e a fabulação em cima de mitologia local encontraram um diálogo curioso entre dois filmes exibidos nesta Mostra de Tiradentes 2023: Cambaúba, de Cris Ventura (exibido na Olhos Livres), e Cervejas no Escuro, de Tiago A. Neves (exibido na Aurora). Por sua vez, dentro do panorama do cinema brasileiro contemporâneo, é possível ver esse movimento de vai-e-vem poroso do documentário para a ficção, por meio de narrativas investigativas ficcionais, que são disparadas no presente por corpos em movimento e que servem de ponto de contato para abrir uma fenda reveladora de um passado real, disparando olhares invisíveis por trás das geografias, arquiteturas, estruturas socioeconômicas, heranças e mitos que hoje formam uma região. Exemplos recentes no cenário de festivais também podem ser encontrados em Subterrânea, de Pedro Urano, exibido na Olhos Livres em Tiradentes 2021, e em Pajeú, de Pedro Diógenes, exibido na Mostra Vertentes da Criação naquele mesmo ano. Respectivamente, os quatro filmes aqui colocados em grupo possuem como órbita uma investigação fictícia, mas que desemboca no documental, de parte ou totalidade de uma região: Goiás; Princesa; Rio de Janeiro e Fortaleza. 

É interessante notar a formação dessa massa fílmica, quase como um subgênero de ficção histórica, de cineastas que vão em busca de liberdades criativas para dinamizar a explanação de temas que, talvez, sob a carapuça do documentário direto ou educacional, não conseguiriam tanta visibilidade em festivais ou até comunicabilidade com o público contemporâneo, ao mesmo tempo que a ficção também permite explorar na mise-en-scène possibilidades de evocar imageticamente ou atmosfericamente misticismos e ecos fantasmáticos que de fato compõem um quebra-cabeça de um Brasil folclórico ou das histórias que foram soterradas por baixo da ‘História oficial’. Apresentado esse cenário, me parece proveitoso, tanto para Cambaúba quanto para Cervejas no Escuro, colocá-los em choque, revelando tanto seus pontos de encontro quanto de desencontro. 

Há um ponto de partida comum a ambos: uma cineasta fazendo um filme como parte da própria diegese. No caso de Cambaúba, temos a própria Cris Ventura, que ensaia uma abordagem híbrida ao se colocar como uma “personagem fictícia”, que interage com a população local para investigar mitos da origem da Rua Cambaúba. Já em Cervejas no Escuro, há a atriz e personagem Edna, moradora-local de Princesa, na Paraíba, que, para superar o luto de seu marido, deseja fazer um filme sobre sua vida e sua cidade. Dadas as premissas, percebe-se que há um grande diferencial entre os dois no que tange o protagonismo e a escolha do ponto de vista, o que reflete na maneira como as imagens são mediadas. É justamente esse ponto que, para mim, radicalmente afeta a experiência com as duas obras e por isso queria expandir tal debate.

Em uma relação inversamente proporcional, Cervejas no Escuro faz um movimento de dentro para fora (do Mundo para o Cinema) e Cambaúba faz um movimento de fora para dentro (do Cinema para o Mundo). Ou seja, o filme de Tiago A. Neves é um filme sobre Cinema, mas feito pelo povo e para o povo, enquanto o filme de Cris Ventura é um filme sobre o povo, feito para o Cinema, formando uma espécie de filme-estrangeiro, que parte de um corpo alienígena de uma cineasta, que tenta se enraizar num habitat estranho. De modo algum Cambaúba é um filme feito de má-fé, mas a maneira como se constrói parece estranhamente gravitar mais ao redor da existência de sua diretora-protagonista, cuja presença não consegue se invisibilizar e servir apenas de meio para investigar a região. Ao invés disso, ele chama atenção para seus artifícios, principalmente por suas tentativas de ficcionalizar interações com cidadãos reais daquele lugar, o que estimula um caráter artificial dentro da mise-en-scène. Isso faz com que o filme pareça um projeto que é uma tentativa de controle de uma cineasta sobre o mundo, desequilibrando a tal relação de porosidade entre ficção e documentário, ao trazer esses corpos reais à fórceps para dentro da ficção. Portanto, essa estratégia se revela um tiro no pé, pois não só ela constrange essas pessoas reais a terem atuações tenebrosamente amadoras — e que é difícil entender a razão delas serem submetidas a isso —, ao mesmo tempo que também tira a espontaneidade delas como pessoas reais, pois suas presenças se dão ali meramente como personagens que precisam ler uma fala.

É difícil ver com clareza no produto final que foi exibido as intenções por trás da inserção da própria Ventura como personagem. Afinal, sua presença como diretora e a existência da metalinguagem não geram fricções marcantes com aquele mundo, tampouco são um comentário irônico sobre cineastas tentando encontrar histórias locais para seu filme. Chega-se ao fim e certas cenas metalinguísticas como os planos da sua pilha de livros sobre Cinema, que tem exemplares de Tarkovsky e de Robert McKee, ou o próprio ato de filmar a escrita do roteiro do filme no Word, parecem fragmentos soltos, parte de algo que não pertence àquele mundo, de uma ideia acadêmica não concretizada. Posso supor que existe uma vontade de Cris Ventura de fazer de Cambaúba um filme-processo, no qual, ao interligar o ato de feitura do filme com o ato de busca pelas origens de Cambaúba, estaria se atingindo um tipo de valorização do aparato cinematográfico como revelador do que foi apagado pela História, mas é uma pena que o metafilme e o filme histórico aqui parecem estar disputando espaço um com o outro, de modo que os artifícios do primeiro vão apagando a potência do segundo.

Com um resultado mais orgânico ao organizar a confluência entre Cinema e História, temos Cervejas no Escuro. Dentro da narrativa de Tiago A. Neves, a inserção do projeto fílmico da protagonista é uma maneira de fazer com que Princesa possa existir e resistir através do Cinema, enquanto o próprio gesto de fazer cinema também se revela como uma resistência por si só em todas as suas dificuldades processuais, se revelando como uma materialidade que está em contato com o mundo — ou seja, o oposto de cinema acadêmico. Ao ter como elo a figura extremamente humana de dona Edna no inusitado papel de cineasta amadora, surge uma ponte extremamente possível para falar sobre a ideia de metalinguagem a partir de uma personagem sem experiência, apenas com sua vontade de fazer Cinema, lugar no qual todos podem se colocar. Inclusive, em Cervejas no Escuro, a escolha de Tiago A. Neves ao ter comédia popular enquanto gênero não deixa de ser uma carta de princípios muito clara de que seu filme quer acima de tudo criar um ponto de contato com o público geral, de tal modo que essas ideias convergem numa máxima de devolução do cinema ao povo em múltiplas camadas. 

Curiosamente, há uma inversão de papéis em relação a Cambaúba, pois se Cris Ventura é uma “cineasta” estrangeira ao mundo daquela região, por sua vez Edna é do mundo e estranha ao universo do Cinema. Pela dialética entre os dois filmes, me parece que a ordem entre os produtos faz diferença na geração de um pathos comunicável com quem os assiste. Isso reflete em uma consequência: por mais que Cervejas no Escuro esteja falando de Cinema, inevitavelmente tudo que ele mostra não deixa de ser uma revelação do próprio mundo documental que está escondido nesse mockumentary, já que seu processo de visibilizar os bastidores de uma produção também materializa o Cinema enquanto uma atividade social-econômica-histórica e afetiva. Existem muitos filmes feitos para festivais que parecem priorizar se comunicar com a Academia, júris e curadorias, mas pouco fincam suas raízes no mundo, enquanto essa obra da Paraíba faz o movimento oposto, o que faz de sua seleção pela curadoria da Mostra Aurora em Tiradentes especial e também corajosa, pois há claramente um disfarce de simplicidade ao redor de Cervejas no Escuro que esconde uma maior maturidade por trás de suas intenções.

 

*Filmes vistos na Mostra de Tiradentes 2023, como parte da cobertura in loco do festival. Acompanhe nossa cobertura completa aqui.

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